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Por: Abel Djassi Amado

 abel djassi

Numa recente entrevista no jornal A Nação, versão online de 17 de Junho, o ministro da Cultura e Indústrias Criativas da República de Cabo Verde, Abraão Vicente, manteve a necessidade de conhecer, de uma forma profunda, a história de Cabo Verde. Isto no contexto do debate sobre as estátuas erguidas durante o período colonial em Cabo Verde. Não poderia deixar de concordar com o ministro. Existe, claro está, um déficit significativo sobre o conhecimento da história das ilhas.

O ministro AV pronunciou, de forma categórica, “quem descobriu [Cabo Verde] foi Diogo Gomes.” A declaração é não só bombástica como também insustentável de ponto de vista documental. Mais ainda, disse o ministro que tal corresponde a “parte fixada” da “narrativa da história de Cabo Verde.” (sic). Se existe consenso entre os historiadores sobre o processo de “descobrimento” das ilhas de Cabo Verde nos anos de quatrocentos é que realmente não existe um consenso (ver, neste sentido, o maravilhoso trabalho de Victor Barros, “A escrita da história da ‘descoberta’ de Cabo Verde. Fabulário cronográfico, história oficial ou fabricação do consentimento?”). Os documentos disponíveis não provocam, ao contrário do dito pelo AV, um consenso. Aliás, muito pelo contrário. Documentos históricos avulsos e variados apontam para vários indivíduos como “descobridores” das ilhas. É a conclusão trazida na História Geral de Cabo Verde, se calhar a monografia-autoridade da história de Cabo Verde dos primeiros dois séculos da sua fundação.

No capítulo reservado ao “descobrimento” (ou “achamento,” expressão que é também usada pelo autor), Luís de Albuquerque faz um resenha crítica de vários documentos, oficiais e não só, dos séculos XV e XVI, e conclui, como dito mais acima, que realmente três nomes tem sido apontados como sendo os primeiros a deparar com aquilo que mais tarde seria designado de ilhas de Cabo Verde: Alvise Cadamosto, António Da Noli, e Diogo Gomes (os dois primeiros de naturalidade italiana e o último nascido em Portugal). Embora ciente de que é historicamente difícil fazer um pronunciamento categórico sobre quem teria sido o primeiro, o real “descobridor,” Albuquerque escreve que aquele estatuto seja atribuído ao italiano António da Noli. A carta régia de 19 de setembro de 1462 concede ao italiano Da Noli como a pessoa que teria achado a ilha de Santiago, ilha de São Filipe (Fogo), a ilha de Maio, a ilha de São Cristóvão (Boa Vista), e a ilha do Sal. Albuquerque conclui assim: “somos levados a preterir Diogo Gomes em favor de Da Noli, pela simples razão de que o português se atribui a si mesmo o descobrimento, enquanto Da Noli é designado por descobridor em documento firmado pelo rei.” Ou seja, embora os documentos disponíveis não conclusivos—ao contrário que afirma o ministro—a História Geral de Cabo Verde parece mais inclinado a atribuir o estatuto de descobridor das ilhas ao italiano Da Noli. É de notar que todos os dados coligidos no livro História de Cabo Verde encontravam-se à disposição de historiadores e outros interessados no assunto na altura da ereção das estátuas dos chamados “descobridores” nos anos cinquenta. Aliás, décadas antes, o historiador cabo-verdiano Senna Barcellos escreveu que é realmente “incontestável que António da Noli foi um dos descobridores.”

A pergunta que não quer calar seria então o que explica o facto de ser Diego Gomes e não António Da Noli a ser homenageado nos anos cinquenta. Para responder tal pergunta teríamos de viajar não para a “época dos descobrimentos,” mas antes ao período do tardo-colonialismo estado-novista. A estátua de Diogo Gomes foi uma construção do Estado Novo em Cabo Verde. Tal como qualquer outra estátua, constitui, evidentemente, uma declaração política que visa disseminar determinada visão e narrativa históricas. Inaugurada em 1956, pela ocasião do trigésimo aniversário da então chamada Revolução Nacional (ou seja, o golpe de Estado de 26 de Maio de 1926 que derrubou a I República portuguesa e que, eventualmente, abriu caminhos para a construção do Estado Novo protofascista), a estátua de Diogo Gomes—assim como as outras manifestações arquitetónicas e simbólicas do mesmo tempo—não era mais do que um instrumento político de imaginação de uma Nação pluricontinental e plurirracial, visionada pela elite política estado-novista. O Estado Novo do pós-II Guerra Mundial ter-se-ia reformatado e a ideia central passou a ser a de cultivar nas mentes das populações das colónias que “Aqui é Portugal,” copiando, assim, a fórmula desenvolvida pela França em relação à sua colónia da Argélia. Dito de uma maneira diferente, a ideia central seria a de inscrição no espaço colonial de instrumentos mnemónicos que ajudavam a fortalecer e solidificar a ideologia lusotropicalista, credo oficial do regime (já agora, é quase no mesmo período que o regime provocou um dano histórico ao monumento do Pelourinho na Cidade Velha com a incorporação no seu topo a Esfera Armilar e a Cruz de Cristo, dois símbolos do Estado Novo).

Se a ideia central do Estado Novo era a celebração de Portugal não fazia sentido algum estar a homenagear, através de estátuas, individualidades que não sejam de naturalidade lusitana. Assim, na mesma altura em que se erguia o bronze de Diego Gomes, “absent images of memory” (imagens ausentes de memória), de que fala Marita Sturken, fora assim imposta ao António da Noli (ou mesmo ao Alvise Cadamosto). Fica, assim, bem clara que a ideia de estátuas no Estado Novo respeitava mais a ideia da Nação imagem pela sua elite do que propriamente a verdade histórica.

Dito de uma maneira diferente, a estátua em si representa uma certa relação de poder no momento da sua ereção. É, por este motivo, a imposição de uma certa narrativa. Afirmar que as estátuas são história é não conhecer o que é a história (sobre o assunto, ver a declaração da American Historical Association no que respeita à remoção de estátuas dos confederados nos EUA). As estátuas são discursos oficiais e ajudam a compreender as relações de poder no momento das suas construções e colocações no espaço público. Pedir a remoção das estátuas, assim, não só seria um ajuste de conta político (uma nova relação de poder) como também uma exigência moral (explícito na petição escrita de Gilson Varela Lopes). Não se pode, de maneira alguma, celebrar no presente aqueles que tenham cometido atrocidades contra os direitos humanos de outros (passe a anacronia) sob a pena de acumularmos a culpa metafísica de inação de que escreve Karl Jaspers. Estátuas de Diego Gomes (ou Serpa Pinto e outros) pertencem ou a um museu ou a um cemitério de estátuas, tais como desenvolvidos na Hungria ou na Índia.

In cauda venenum, deve o ministro, enquanto sujeito de política cabo-verdiana, saber que movimentos sociais, sejam em Cabo Verde, sejam noutros países, são basicamente seres sociais que copiam e emulam processos e dinâmicas políticos de outras paragens. Tem sido sempre assim. Naturalmente, que Cabo Verde não poderá ser uma exceção, embora assim a queira o ministro. E, mais, chamar a um movimento social como derivativo (“moda,” na expressão usada) pode muito causar o tiro pela culatra. Sendo o ministro um apaixonado pela história, deve querer ele seguir de perto as indicações de George Santayana: quem esquece a história estará condenado a repeti-la. Ora, nos últimos momentos da I República de Cabo Verde, o PAICV, no poder, respondeu que não cedia ao que chamou de “modismo,” a onda de democracia liberal global. O resto é história…

Comentários  

+1 # AMANDIO BARBOSA VICE 27-06-2020 23:25
Para certos ministérios devia haver concurso com provas escritas e orais.
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+1 # Mutinha 20-06-2020 06:31
Eis o comentário de um analfabeto. Todos que comentaram aqui, começando pelo autor até o AV, estão todos enganados; sabem porque? É que na época, não existia radares, então, na proa do navio tinha um marinheiro, que se avistasse qq coisa, avisava o oficial de serviço, quem por sua vez avisava o capitão; portanto, quem descobriu foi o marinheiro que jamais seria mencionado, porque a descoberta seria dada ao comandante, mesmo que estivesse a dormir.
Meus amigos e senhores, a maior mentira que existe no mundo, é a história. FOI SEMPRE MAL CONTADA E INVENTADA.
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0 # Carla Semedo 19-06-2020 10:50
Mas, tinha de mencionar o PAICV de alguma maneira... esse equilibrismo mostra que, acima d8e tudo, está uma outra preocupação...
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-1 # Djuntamoh 19-06-2020 09:13
Falou e disse!
Pobu di Kabuberdi ta gardise!
Obrigadu Abel Djassy.
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+2 # Filomena Osório 19-06-2020 00:07
Quem pretende continuar a defender o medíocre e oportunista Kabraão Vicente? Para fechar este debate sobre quem descobriu Cabo Verde e a estátua de Diogo Gomes, porquê a maior ilha de Cabo Verde foi dividida em duas capitanias pelo Rei de Portugal sem nenhuma dada a Diogo Gomes? Por decisão de D. Fernando, que a havia recebido em doação de seu irmão D. Alfonso (rei de Portugal), a ilha de Santiago foi dividida em duas capitanias imediatamente concedidas aos dois capitães donatários: a parte meridional (onde ficou a Capital, CIDADE VELHA) a Antonio da Noli e a setentrional a Diogo Alfonso. NÃO A MAIOR CEGO DO QUE...
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0 # Luiz de Pina 19-06-2020 15:29
Dona Filomena Osório
Regresse a 1460 e tire Diogo Gomes do comando das caravelas que avistaram Santiago no dia 1 de Maio. E simples. O autor põe em dúvida. A senhora afirma. Os dois estão errados.
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+1 # Filomena Osório 19-06-2020 18:16
Caro "Luiz de Pina", é bom ler André Donhela, Valentim Fernandes, Senna de Barcelos, a História Geral de Cabo Verde. E mais, entender a sabedoria dos genoveses nas técnicas de navegação. Se o Rei de Portugal não deu a Diogo Gomes terra alguma, não há mais dúvida. Não podemos ser mais papista que o Papa. Não temos de entrar nas ideologias partidárias para distorcer a realidade histórica. As nossas crianças e o nosso povo agradeceram. O Kabraão Vicente e o seu juiz infantil não merece a atenção da tua inteligência e sabedoria
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-5 # Luiz de Pina 18-06-2020 17:40
O Abel Djassi Amado leu os volumes da história de Cabo Verde e transcreveu apenas a parte que lhe convém. Responda por favor: Quantos eram os navios que acharam Cabo Verde a 1 de Maio de 1460 ? Quem era o comandante da expedição? Na chegada a Cidade Velha, há um cronista. O achamento de Cabo Verde sempre foi atribuído a a Diogo Gomes e Antônio da Noly. A história de um país é aquilo que de facto aconteceu. O Amado nunca vê Cabo Verde como um arquipélago que estava desabitado e que foi povoado pelos portugueses. Depois veio a miscegenação onde os portugueses e os escravos fugitivos cruzaram se e deram origem à nação cabo verdiana. Aqui todos valem. Diogo Gomes e os escravos todos em pé de igualdade.
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+2 # SÓCRATES DE SANTIAGO 19-06-2020 13:52
Concordo ipsis verbis com o conteúdo deste brilhante e esclarecedor artigo de Abel Djassi Amado, dando uma grande lição ao incompetente e ignorante ministro da cultura de Cabo Verde, Abraão Vicente, pelo total desconhecimento da HISTORIA DO NOSSO PAIS E DO NOSSO CONTINENTE. Alias, quem deveria ser removido do lugar juntamente com o traficante de escravos, Diogo Gomes, e o proprio Abraao Vicente, este rapazinho playboy que, ao longo de quatro anos do seu mandato, nada de jeito tem feito no sector da cultura, a não ser financiando alguns projectos dos seus amiguinhos tugas e promovendo os seus lacaios aqui no País, o que tem contribuido grandemente para semear conflitos entre os nacionais, sobretudo entre BADIOS e SANPADJUDOS.
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+2 # Africando 18-06-2020 17:23
Seria um grande favor para estes colonialistas e seus capatezes se se acabar com os pelourinhos, campos de concentração, espada do diogo gomes, etc.é bom deixar ali para as proximas geracoes verem o horror que cometeram contra os seres humanos. forca Djassi
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+4 # António Pereira 18-06-2020 16:27
No histórico período de transição ( 25Abril a 05de Julho de 1975) a estátua do Diogo Gomes foi apeada e depositada no espaço (quintal )da Electra da Praia. Posteriormente, viria a ser recolocada por decisão deliberativa dos eleitos (da maioria) do MpD, na assembleia municipal da Praia, sob a proposta da Câmara Municipal da Praia, dirigida por Jacinto Abreu dos Santos.
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+2 # António Pereira 18-06-2020 16:14
No histórico período de transição (25 de Abril a 05 de Julho de 1975), a estátua do Diogo Gomes foi apeada e depositada no espaço (quintal) da Electra da Praia. Posteriormente, viria a ser recolocada por decisão deliberativa dos eleitos (maioria do MpD) na assembleia municipal, sob proposta da Câmara Municipal da Praia, dirigida por Jacinto Abreu dos Santos.
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+6 # Mário Gambino 18-06-2020 12:59
Uma boa chapada na cara do imbecil e ignorante. Senhor articulista, as pessoas que chegam de ministro sem nunca ter lido história do seu país não passar a gostar da coisa de um dia para o outros. Falar do sujeito de nome Bicente já cansa. É tanta burrice e trapalhada em tão pouco que mete nojo.
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+2 # Filomena Osório 18-06-2020 12:47
Muito bom artigo, bem estruturado e sobretudo pedagógico. O destinatário do artigo, o Kabraão Vicente não merece tantas explicações. É um preguiçoso crônico, que não lê: o primeiro volume da História Geral de Cabo Verde, no Capítulo I, é claro sobre quem descobriu em 1460. Há milhares de outras escritas e teses. Em 2020 não há mais dúvida sobre o assunto. É só em Cabo Verde que uma pessoa com uma aridez intelectual e um nível de conhecimento tão baixo pode ser ministro da Cultura. Para se dar uma legitimidade política e criar uma zona de conforto eleitoralalista, o Kabraão Vicente tentou manipular a Comissão Política do MPD para impôr a sua marionete preferida, o Presidente do IPC, Jair Bolsonaro Fernandes. O Kabraão Vicente não vale nada e até o final do seu mandato de ministro ele continuará a preencher o seu papel de palhaço.
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-4 # Clara Medina 18-06-2020 12:39
Já estava apreensiva e ansiosa para vêr quando é que o fenómeno da destruição de estátuas ia começar em Cabo Verde. Dado o nosso complexo de inferioridade e incapacidade de lidar com a História demorou mas chegou. Graças ao Facebook nós não ficamos para trás. Até parece que somos papagaios ou papel químico.
O Ministro tem toda a razão. É sImples moda e infelizmente não temos capacidade para inventar. Seria mais vantajoso se essa "malta" empregasse um pouco do excesso de tempo livre que eles têm para aprofundar no conhecimento da História.
Triste um povo que não tem nada de original e que só copia, sem nenhum espírito ou capacidade de crítica tudo o que passa lá fora. Chegámos sempre atrasados.
Qual será o próximo tema e quem será o primeiro a lançar uma petição no Facebook de qualquer acontecimento mediático que acontecer lá fora.
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-6 # Adralmeida 18-06-2020 18:01
Concordo em absoluto com este comentário
Infelizmente essa "moda" de remover as estátuas chchegou a estas ilhas. Temos actualmente muitos "iluminados" em Cabo Verde mas cujas "ideias iluminosas" pecam por falta de originalidade. Os grandes países fizeram e "nós temos de fazer tamvém. Pobres coitados!
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