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Por: José Maria Neves*
JMN
 
A declaração do estado de emergência é constitucional - ela é feita nos termos da Constituição, que estabelece os requisitos e os limites materiais da mesma -, mas é um ato grave, desde logo porque limita os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos.
 
Trata-se de um momento de excepção, quando estão em causa a própria existência do Estado e/ou a sobrevivência da coletividade. Por isso, num Estado de Direito Democrático, o processo que conduz à declaração do estado de emergência está rodeado de especiais cuidados.
 
O Presidente da República, quem é competente para o efeito, deve, previamente, ouvir o Governo e ser autorizado pelo Parlamento (h) do n.1, do art.º 135 da CRCV).
 
Exige-se, pois, o envolvimento de todos os órgãos de soberania. No caso da autorização parlamentar, se a Assembleia Nacional não estiver reunida ou não for possível a sua reunião imediata, a Comissão Permanente pode dar a autorização, devendo a plenária ratificá-la na primeira reunião a seguir (n.4, art.º135 da CRCV).
 
A declaração deve ser fundamentada e indicar o âmbito territorial, os seus efeitos, os direitos, liberdades e garantias que ficam suspensos, bem como a sua duração, que, todavia, não poderá ser superior a 30 dias (em Portugal não pode ser superior a 15 dias e na África do Sul, a 21 dias) prorrogáveis por igual período (n.1, art.º272 da CRCV). Há, todavia, direitos que são intangíveis como “os direitos à vida, à integridade física, à identidade pessoal, à capacidade cicil e à cidadania, a não retroatividade da lei penal, de defesa do arguido e a liberdade de consciência e de religião” (art.º274 da CRCV).
 
 
«Face a ameaças como a do COVID 19, as pessoas, com medo e pânico, tendem a aceitar acriticamente todas as medidas das autoridades que na perspetiva delas afastam a ameaça e resolvem o problema, independentemente da sua natureza. O autoritarismo e o totalitarismo afirmam-se, muitas vezes com apoio popular, em situações de manifesta crise, de instabilidade política e de ingovernabilidade.»
 
 
Durante a vigência do estado de emergência, a Assembleia Nacional não pode ser dissolvida (Art.273.º da CRCV), nem as competências e o funcionamento dos restantes órgãos de soberania podem ser afetados (art.º275.º da CRCV).
 
Sendo embora uma situação de excepção, em que o Governo governa com menos limites, não se verifica, mesmo assim, nem a suspensão da constituição, nem a suspensão da democracia.
Perante a calamidade pública provocada pela pandemia do COVID 19, vários países vêm declarando o estado de emergência com conteúdos e interesses diferenciados. Há aqueles que restringem quase tudo, até mesmo o direito à liberdade de expressão, a pretexto de combate às fake news (caso da Hungria), e outros, com instituições mais consolidadas e uma cultura democrática mais arraigada, cujos governantes, face à necessidade do estado de emergência, demonstram cautelas, sentido de estado e manifesta autovigilância contra excessos, demagogia e populismo (caso de Portugal).
 
Em Cabo Verde, também, foi declarado o estado de emergência por causa do COVID 19. O processo especial previsto na Constituição da República foi integralmente cumprido, tendo o Presidente da Republica ouvido o Primeiro Ministro e obtido a autorização da Assembleia Nacional, através da sua Comissão Permanente. O Presidente ouviu ainda o Conselho da República, nos termos da Constituição (f), art.254 da CRCV), os partidos políticos, os sindicatos, o patronato, as confissões religiosas, e várias personalidades da sociedade civil.
 
Todos concordaram com a proposta do Presidente da República. A Comissão Permanente da Assembleia Nacional aprovou por unanimidade a Resolução que autoriza o Presidente a declarar o estado de emergência.
 
Face a ameaças como a do COVID 19, as pessoas, com medo e pânico, tendem a aceitar acriticamente todas as medidas das autoridades que na perspetiva delas afastam a ameaça e resolvem o problema, independentemente da sua natureza. O autoritarismo e o totalitarismo afirmam-se, muitas vezes com apoio popular, em situações de manifesta crise, de instabilidade política e de ingovernabilidade.
 
Nesses momentos, são precisos cautelas, espirito crítico e sentido de responsabilidade.
Acredito na lucidez, na liberdade de espírito, na cultura democrática e no sentido de estado do Presidente da República, do Parlamento, do Governo e dos líderes políticos. Confio em como este momento poderá funcionar como um teste às nossas instituições democráticas e atores políticos.
Cabe agora ao Governo a execução do Decreto Presidencial. Espera-se sobretudo contenção e proporcionalidade de todos os principais atores envolvidos. Os sinais dados recentemente, num comunicado do Governo, relativamente às fontes das noticias e a fake news sobre coronavírus não são muito encorajares no que se refere à liberdade de expressão e de imprensa. Ainda bem que a AJOC esteve atenta e reagiu imediatamente.
 
«Gostaria imensamente que o primeiro estado de emergência declarado em Cabo Verde fosse prévia e abertamente debatido na plenária do Parlamento, onde estão presentes as principais sensibilidades políticas. Por razões políticas e pedagógicas.»
 
Uma outra inquietação minha refere-se à suspensão dos trabalhos parlamentares durante este período. Perante uma situação de calamidade pública, de estado de emergência, nenhum órgão de soberania, máxime a Assembleia Nacional, pode claudicar. Não é por acaso que a Constituição proíbe a dissolução do Parlamento durante a vigência do estado de emergência e estabelece que este não pode afetar a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania. A Assembleia Nacional tem especiais responsabilidades neste processo, designadamente a autorização ao Presidente da República para a declaração do estado de emergência, a fiscalização do seu cumprimento e a sua eventual prorrogação. Na África do Sul, por exemplo, o estado de emergência é declarado por um ato do Parlamento.
 
Na segunda sessão de Março, não se realizou o tradicional debate com o Primeiro Ministro, pelo que ouvi, com assentimento dos dois Grupos Parlamentares. A Assembleia estaria eventualmente reunida na próxima semana, mas foi a sessão adiada para meados de Abril, quando deverá ratificar a autorização para a declaração do estado de emergência, já no final do prazo da sua vigência.
 
Os Deputados, face à grave ameaça à segurança coletiva, não podem ser os primeiros a retirar-se do campo, enquanto os outros órgãos de soberania funcionam normalmente.
 
Que dizer, então, dos médicos, enfermeiros e restante pessoal da saúde, que estão na linha da frente do combate contra a pandemia? Que dizer das forças da segurança e ordem públicas? E dos jornalistas e outros grupos profissionais que terão que obrigatoriamente de trabalhar?
 
Gostaria imensamente que o primeiro estado de emergência declarado em Cabo Verde fosse prévia e abertamente debatido na plenária do Parlamento, onde estão presentes as principais sensibilidades políticas. Por razões políticas e pedagógicas. Teria o Parlamento apenas de tomar medidas de segurança face a propagação do coronovírus, como outros parlamentos pelo mundo fora. Veja-se o esforço que Ferro Rodrigues está a fazer para que o Parlamento continue a funcionar, embora com os naturais constrangimentos que a situação impõe.
 
É que, apesar da crise, apesar do estado de emergência, não se suspende a democracia nem a constituição.
 
Espero que consigamos ultrapassar este momento mais difícil, com o engajamento e o contributo de todas as caboverdianas e todos os caboverdianos.
 
* Ex-primeiro-ministro
Artigo originalmente publicado pelo autor na sua página no facebook

Comentários  

+1 # Daniel Carvalho 31-03-2020 09:46
Gostei do artigo, na sua globalidade.Uma análise simples, mas madura e responsável.Todas as formalidades legais, políticas e éticas foram respeitadas antes de se decretar o estado de emergência.
Entretanto, tenho por mim que que a Comissão Permanente da Assembleia Nacional,é mais eficaz do que o todo, pois, faço ideia que é composta pelos de[censurado]dos politicamente mais experientes e melhor preparados.
Salvo devido respeito por todos os nossos eleitos, sabe-se que não têm o mesmo nível de contribuição a dar.
Pessoalmente, compreendo a Comissão Permanente como uma espécie de Conselho da Administração de uma Empresa, quer seja pública ou privada. As suas decisões são válidas independentemente do que pensa a Assembleia Geral da empresa a que se refere..Julgo estar-se no caminho certo.
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-5 # Terra-terra 29-03-2020 18:03
Caro Joao Paulo Ferreira,
Nao fosse a sua idade, ficariamos desconfiados da sua paternidade. Tanto idio fe Zema? Voce ficou no Direito e ainfa continua procuranfo tacho, enquanto quem o deixou ja regressou do poleiro e com legitimas pretensoes de la regressar. Voce, nem com esse "pandemonio' ganha alguma consideracao. Que pena?
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+3 # Agostinho Lopes 29-03-2020 17:15
Censuraram o meu comentário?
Porquê se era só um esclarecimento?
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+4 # Agostinho Lopes 29-03-2020 16:28
Esclarecimento: A Assembleia Nacional está em pleno funcionamento e os de[censurado]dos todos estão no ativo. Nem desertou.
Esta semana que começa amanhã haverá Plenária e o Parlamento vai exercer o seu poder legislativo normal para permitir a governação neste período.
Há decisões que cabem só ao Parlamento tomar para que o Estado funcione normalmente, especialmente neste período.
Somos um Estado de Direito Democrático e não uma república das bananas; somos parte do mundo e temos obrigações e compromissos internacionais que fazemos questão de respeitar.
Haja seriedade!
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+4 # João Paulo Ferreira 29-03-2020 15:07
"Se você não consegue explicar um assunto de forma simples, para todos, então você ainda não o domina completamente" Feynman.
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+2 # Lomba 29-03-2020 13:13
Pronto. O Dr.Valdemiro De Brito, O tal Penalista de esquerda que vive em Portugal ou em Macau acabou de lhe enviar esta encomenda. O cerebro deste seria incapaz de urdir tal raciocinio.
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-2 # Raul Fonseca 29-03-2020 12:19
Ainda bem ja apareceu um homem com H, para dar a pedra no charco, o estado de emergencia não era necessário para todas as ilhas ate podia justificar na ilha de São tiago e boavista, mas o governo para entreter o povo e meter medo e justificar a mal governação nos últimos 4 anos o estado de emergencia caiu como um bonus ao governo, depois de praticar muitas ilegalidades tais como meter os viajantes dos últimos voos dos estados unidos em quarentena obrigatória vigiada pelas tropas armadas ate os dentes, o governo tinha que emendar o erro.
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+2 # João Paulo Ferreira 29-03-2020 11:58
Olá caro candidato a Professor Doutor Catedrático, o nobre Professor não esperou para ter acesso ao despacho de SE SR PR e vem desatado a professora as suas já conhecidas asneirinhas, asneiras e asneironas sobre uma matéria que o Professor francamente não domina. Os fundamentos técnico-juridicos e políticos sobre os quais se assentam a decisão de Declaração do Estado de Emergência estão publicados no BO que saiu ontem às 16h30. Já na sua alocução, SE o SR Presidente teve o cuidado de não falar apenas para os juristas, mas sobretudo, para sociedade, o que acho muito bem. O candidato a Professor Doutor comete erros de principiantes e continua a não dar-se muito bem com o Direito, razão pela qual nos deixou em Coimbra, ao comparar o quadro jurídico constitucional de Cabo Verde com o de África do Sul ou Portugal. Não cabe essa comparação, porquanto a nossa Constituição (C) e não (c) não é igual a dos países que cita. Compreendo, de resto a sua ignorância neste particular. O que poucos, entre os seus seguidores sabem, é que o Senhor é o seu partido abandonam a sala, no Ato Solene de aprovação da nova CRCV em Setembro de 1992. E justiça seja feita, apenas o de[censurado]do independente do David Almada permaneceu na sala. O candidato a Professor Doutor e Catedrático faz um texto truncado, destinado a atrair a atenção dos desatentos, comete analíticos graves, mas deu para perceber que tem um bom relógio suíço. Aprenda com a precisão dos suíços e saia do lugar-comum, caro candidato.
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+6 # Atento 29-03-2020 10:05
Eles não estão na linha de frente porque são uns ratos, que mordem, sopram, sugam os recursos do povo e quando na primeira dificudlade vão se esconder!
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