Pub
Por: José Maria Neves*

Chegava da Universidade depois de um dia estafante.

Disse-me ele assim de chofre, estás bem da vida, com dois vencimentos, um de antigo Primeiro Ministro e outro de Professor Universitário, não tens problemas, vale sempre a pena!

Esbocei um sorriso para dizer-lhe que, em Cabo Verde, os antigos Chefes do Governo não têm estatuto. Segundo o Estatuto Remuneratório dos Titulares de Cargos Políticos, têm direito a um subsídio correspondente a 75% do vencimento do Presidente da República, que não pode ser acumulado com outras remunerações, exceptuando as dos cargos eletivos. Ou seja, pode um antigo PM acumular o subsidio com o vencimento de um Deputado ou de um Presidente de Câmara, mas não pode acumulá-lo com o de um professor ou de um técnico superior da Administração Pública.

Adianto-me para esclarecer que não faço aqui nenhum juízo de valor, apenas constato um facto.

Como é sabido não quis exercer nenhum cargo político após deixar o Governo. A minha intenção sempre foi regressar à “vida civil”.

Quando deixei o cargo de Primeiro Ministro fui fazer um programa de doutoramento em Lisboa, pedi o subsídio, porque não dispunha de outro rendimento. Logo que regressei ao país, apresentei-me na Universidade de Cabo Verde, meu quadro de origem, onde comecei a dar aulas na Escola de Negócios e Governação (ENG), e pedi, imediatamente, a suspensão do referido subsídio. De modo que, neste momento, o único vencimento que tenho é o de Professor Universitário, como todos os meus colegas de trabalho.

Não reclamo, apenas esclareço para evitar dúvidas e confusões.

Esse regresso à sociedade civil tem-me feito muito bem. Às vezes , quando estamos no poder, escapam-nos alguns detalhes do quotidiano da vida dos cidadãos e da sociedade. Temos protocolo, as nossas visitas são preparadas, muitas das contestações e reivindicações chegam filtradas até nós. Desde que saí do Governo, levo a minha filha à escola, ao Centro de Saúde ou ao Banco de Urgência, vou às repartições públicas, aos cafés e aos supermercados, falo com estudantes nas salas de aulas, oiço as suas contestações e reivindicações nos corredores da Universidade, constato nas ruas, de forma nua e crua, porque sem quaisquer filtros, o modo como as pessoas vivem, contestam, falam dos políticos e dos governos.

Estes três anos de vida “à paisana” têm sido fabulosos para mim. Tempos de reavaliação da política e da governação; tempos de estudos e de reflexão crítica. Todos os políticos deviam ter essa “carreira quebrada”, uns tempos no poder, outros na oposição e outros na sociedade civil. Fosse assim, aprenderíamos todos a relativizar o exercício do poder em democracia, a escutar mais e melhor a oposição, os cidadãos e a sociedade civil, a ponderar melhor determinadas políticas públicas e a cuidar melhor do património público; a ser mais humildes, mais tolerantes e mais argutos.

É claro que a difusão do poder, como escreveu Joseph S. Nye, e o avanço do individualismo (Tzvetan Todorov fala da “tirania dos indivíduos”, em Os Inimigos Íntimos da Democracia), têm resultado em crise do Estado e da Democracia. Os políticos e os governos têm de aprender a lidar como fenómenos sociais e políticos absolutamente subversivos. As manifestações em Hong Kong, Chile, Bolívia, França, Líbano ..., o Brexit, a eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro ... , a crise dos partidos políticos moderados tradicionais de direita e de esquerda, a excessiva segmentação do campo político e o entrincheiramento das forças políticas são apenas sintomas das novas realidades políticas emergentes. As respostas do passado já não são válidas. Para os novos tempos, todos os dias temos que criar novas respostas. Tornam-se, pois, urgentes novas aprendizagens e criação de novos canais e mecanismos, flexíveis e inovadores, de relacionamento com os cidadãos e a sociedade, para se poder encontrar o justo equilíbrio entre o poder do Estado e a liberdade dos cidadãos, entre o indivíduo e o bem comum.

Hodiernamente, a política e a governança têm sido extraordinariamente desafiantes. Requerem, mais do que nunca, paixão, sabedoria, ética e espírito do bem comum e profundas e radicais transformações na forma de fazer política e na forma de governar.

Estamos preparados para esta grande revolução do Século XXI?

* Artigo publicado pelo autor no Facebook.

Comentários  

0 # Evelina Santos 12-11-2019 14:13
Caro, doutor José Maria Neves.
Felicito-o e congratulo-me pelo artigo e desejo votos de um sempre bom aproveitamentamento dessa vida "à paisana".
Penso, todavia, que todos os membros dos cargos de soberania, nunca deveriam deixar de exercer alguns dos seus papéis fundamentais no seio da família; explico-me: apesar de muitos poderem estar em desacordo, para mim, o levar os filhos ao PMI, assistir a algumas reuniões da escola e/ou ao programa do Natal, do dia da criança, é muito importmportante. Quem não retém na mente o orgulho do filho representando com o pai na platéia? :)
Por outro lado, qual é a Primeira Ministra, ministra, e outra que deixaria ou deixou de levar /a bebézinho/a à instituição de acompanhamento respectivo?
Qual a mulher que exerce qualquer cargo político ou responsabilidade em qualquer instituição que se exonera de todo das suas funções de mãe, dona de casa, esposa, filha etc?
Senhor doutor, quero aqui deixar claro que não sou, nem nunca fui feminista e não me considero radical nas minhas posições. Sei que, nesses cargos, há protocolos a cumprir. Mas o governo, como o primeiro responsável na promoção do desenvolvimento familiar, deve levar em consideração para que os ocupantes desse cargos não fiquem muito ou de todo à margem desses papéis fundamentais.
Por último, quanto a mim, em seu governo houve coisas, mas também houve coisas más, particularmente no seu último mandato.
Como sei que a política está-lhe no sangue, e ainda bem que assim é, vai um pequeno conselho:
não deixe de lado um pouco dessa "vida à paisana" da próxima vez, pois ajundam a minimizar os filtros que se vos colocam enquanto membros de governo.
Melhores cumprimentos
Responder
0 # Evelina Santos 12-11-2019 16:44
Faço votos...
Houve coisas boas e.....
Responder
+1 # alguem 11-11-2019 16:51
"a política e a governança requerem, sabedoria, ética e espírito do bem comum" infelizmente tudo isso faltou ao seu governo e ainda faz muita falta em Cabo Verde
Responder
+4 # ecota 11-11-2019 11:11
Tirado as lições, o que mudarias da sua governação durante os 15 anos como primeiro ministro? Onde acha que realmente errou e o que farias se fosses agora primeiro ministro?
Responder
0 # Pepino 11-11-2019 19:40
O que faria era recandidatar se em 2016 ou seja numca tinha abondonando a vida politica para esse desastre do MPD. Uma manada de bois que nem se querem " sen djô pa ladu".
Responder