OITAVAS E DERRADEIRAS ANOTAÇÕES PARA A HONRA E A GLÓRIA DE ALGUNS VERDADEIROS E AUTÊNTICOS MORTOS IMORTAIS NOSSOS, DO POVO DAS ILHAS E DIÁSPORAS, COM ENLEVADA, SE BEM QUE SINTETIZADA, REMEMORAÇÃO DE OUTROS MAIÚSCULOS (RE) CRIADORES E (RE) INVENTORES DO NOSSO MUNDO CABOVERDIANO, AINDA, E PARA TODO O SEMPRE, DO POVO DAS ILHAS E DIÁSPORAS
SECÇÃO TERCEIRA
KAKÁ BARBOZA, UM GRANDE E MAGISTRAL POETA CABOVERDIANO CRIOULÓGRAFO
1. AFRICANIDADE, CABOVERDIANIDADE E AFRO-CRIOULIDADE, COM ESPECIAL ENFOQUE NA EXALTAÇÃO DO HOMEM E DA MULHER DO INTERIOR RURAL DE SANTIAGO E NA LOUVAÇÃO DA REVOLUÇÃO, NO LIVRO VINTI XINTIDU LETRADU NA KRIOLU, DE KAKÁ BARBOZA
1.1. Nota Preliminar
A reivindicação do destino africano de Cabo Verde, tal como constante do Texto da Proclamação Solene da Independência Política da República de Cabo Verde, da (presumível co-) autoria de Manuel Duarte, posto que encontrado o seu rascunho no espólio do eminente intelectual pan-africanista, e lido pelo irmão mais novo Abílio Augusto Monteiro Duarte, no Estádio da Várzea, da Cidade da Praia, a 5 de Julho, nosso ourgulho, de 1975, e o resgate da matriz afro-negra, da vertente afro-crioula e da dimensão africana da cultura crioula caboverdiana foram uma constante na poesia de Kaká Barboza (nominho e, como já se viu na Seção Primeira destas Oitavas Anotações, pseudónimo literário para a escrita poética e a lavra da prosa literária e nome artístico para a composição musical de Carlos Alberto Lopes Barbosa), desde as suas primícias constantes do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu (de 1984), passando por Son di ViraSon (de 1996), assumindo depois carácter distintamente épico-telúrico no livro Konfison na Finata (de 2003).
Com efeito, a reivindicação da africanidade enquanto espaço geo-estratégico, geo-económico e político-cultural propiciador da catarse identitária para a emancipação política caboverdiana evidencia-se desde o seu primeiro livro, Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, estruturado em duas partes, “Son di nos Eransa” e “Son di Ravuluçôn”.
Sendo o desenho da capa da autoria de (Lu) Dipala, o livro é prefaciado por Manuel Veiga e Oswaldo Osório, com textos curtos, todavia de grande pertinência sobre a presença e a recuperação da tradição oral e a incorporação de essenciais aspectos da modernidade na poesia em crioulo de Kaká Barboza, bem como, em geral, na poesia em língua caboverdiana cada vez mais cultivada pelos integrantes das novas gerações literárias, com destaque para aqueles radicados na ilha de Santiago e/ou dela originários, por isso mesmo, quiçá mais motivados e inspirados nas suas ricas tradições orais.
Curiosamente, e tal como a breve nota biográfica do autor, também constante do livro na sua parte final, os textos introdutórios/prefaciais de Manuel Veiga e Oswaldo Osório foram integralmente redigidos em português num livro de poesia inteiramente escrita em crioulo, e integrando, ademais, uma Diklarasan do autor, também curiosamente, porque contra o usual neste livro, escrita segundo as regras estatuídas pelo chamado Alfabeto do Mindelo com os seus famosos “chapéus”, isto é, os diacríticos (mais precisamente, os acentos circunflexos) colocados sobre determinadas consoantes (c, j, l, n, s, z,) para assinalar a palatização das palavras, e não segundo a grafia criada pelo próprio autor e co-existente, em todos os poemas da sua lavra constantes do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, com a grafia da Direcção-Geral da Cultura do Ministério da Educação e Cultura de então, em óbvia conformidade com as regras emanadas para a configuração do chamado Alfabeto do Mindelo.
Nesta última versão (orto)gráfica dos poemas de Kaká Barboza, o nome do autor é então grafado Kaká Barbosa, isto é, em grafia ainda aportuguesada do apelido do autor, que no prefácio de Manuel Veiga é chamado e tratado por C. Barbosa, sendo o C. certamente derivado da primeira parte do seu nome composto de igreja ou de registo oficial (Carlos Alberto). A mesma versão (orto)gráfica introduz, por vezes, algumas variações/correcções ao texto original do autor, como, por exemplo, e com conversão nossa no actualmente vigente ALUPEC, enquanto alfabeto oficial da língua caboverdiana, nos seguintes casos, quase exaustivos: aria em vez de area e stória em vez de storia, no poema A! Kauberdi; ozénsa em vez de ozencia, margós em vez de malgoz e korason em lugar de korasan, no poema Sodadi; sakudi em vez de sukudi, no poema “Aian Fidju Fémia”; korason em vez de korasan, no poema “Dju”; manutenção do verso sima agu´l txororó, não constante (eliminado por lapso?) na versão do poema “Ximbia Pingu d´Óru” grafada pelo próprio autor; raskon em vez de roskon, no mesmo poema; txifri em lugar de krifi no poema “Diviza”; alteração da estrutura dos versos no poema “Pidisan di palabra”: N ta fla pabia N ten ki fla em lugar de N ta fla/pabia Nten ki fla; korason em lugar de korasan no mesmo poema “Pidisan di palabra”, com substituição da mesma palavra por duas vezes; Kristu (com maiúscula) em vez de kristu (com minúscula), também no poema “Pidisan di palabra”, tratando-se neste caso provavelmente da correcção de uma gralha; Rakumendason em lugar de Rakumendaçan e sima e´kre em lugar de cime kre, no poema “Rakumendaçan”; na (em na serenata) em lugar de nha (em nha serenata) no poema “Serenata”; pomo (gralha, certamente) em lugar de pamo, no poema “Serenata”; serenetia (gralha, certamente) em vez de serenatia ainda no poema “Serenata”; sima (gralha, certamente) em lugar de simé e nos em lugar de no, no poema “Lus di nha Strela”; negru em lugar de negu no poema “Lus di nha Strela”; Má-a-a! em lugar de Mááá!, no poema “Puema di o ki´n tchiga”; ti té boranku (talvez se trate de gralha, estando o ti a mais) em vez de té buranku e astia em vez de astea no poema “10 Cilindru na Mutor di Pedra”.
Anote-se ainda que o título do livro vem escrito unicamente no chamado Alfabeto do Mindelo, estando a sua ficha técnica, por seu lado, grafada em português, salvo na referência à editora, que vem assim escrita Instituto Kabuverdianu di Livru, isto é, de forma misturada, com uma palavra grafada em português (Instituto) e o resto escrito em crioulo, ou, então e mais provavelmente, com a denominação da editora escrita em caboverdiano, mas com uma arreliantíssima gralha na palavra Institutu, erradamente grafada Instituto.
A mesma forma misturada, mas desta feita das duas grafias do crioulo, a do chamado Alfabeto do Mindelo e a criada e utilizada pelo próprio autor, é visível no Índice (assim mesmo, escrito em português) colocada na parte final do livro, como, por exemplo, na titulação da Primeira Parte do livro à moda do autor (“Som di nos Erança”), mas com todo o resto grafado segundo as normas do Alfabeto do Mindelo com os seus célebres, por muitos, aliás, considerados famigerados, chapéus. Ou tratar-se-á de mais uma arreliante gralha no caso do subtítulo ao modo do autor, acima referido, tanto mais que, não havendo necessidade, nesse caso de sons palatais, e, assim, de chapéus, a diferença nas escritas desse mesmo subtítulo nas duas grafias disponíveis no livro seria somente entre a utilização de um n (em “Son di nos Eransa”), num caso, e de um m, no outro caso (também em “Som di nos Eransa”).
1.2. Primeira Parte: “Son di nos Eransa”
É com a sina da emigração e a dor da saudade que se inicia esta Primeira Parte do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, designadamente com o poema “A! Kaoberdi”: “Ka ten kusa mas kasabi/Ki nhu sta longi´l tera nho/Ka xintadu/Ka sakedu/Ka na sonu/ka kordadu/Ka mo zdreta/Ka mo skerda/Ka ntende/Ka ntendedu/Ora norti/Ora sul/Ta nabega riba d´águ/Sen un napundi certu”.
Depois da partida para a Terra-Longe, traduz-se o célebre querer bipartido, cunhado por Jorge Barbosa (por alguns considerado o sumo pontífice do ultra-evasionismo), nos seguintes versos, finalizados com um fortíssimo desiderato anti-terralongista: “Bo ki ben bu larga tera/Bu dexa mai/Bu dexa kretcheu/Bu larga tudu/Pamo ancia´l ben mas ki fika/Má ken ki ben sta fadigadu/Ku xintidu na bai/Si ben e sabi/Fika e riba´l sabi”. Esse desiderato anti-evasionista, na sua dimensão anti-terra-longista, de todo alheia a desejos emigratórios e avessa a ilusórias pretensões de buscar uma vida melhor no estrangeiro, e muito presente na poesia em crioulo de Kaká Barboza, parece reflectir a própria e relativamente curta experiência emigratória do autor, aliás, brevemente referida na sua Nota Biográfica constante do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, onde se escreve o seguinte: “Em 1971 emigrou, tendo regressado à sua terra natal, para não mais se ausentar”.
É neste contexto anti-evasionista, primacialmente na sua vertente anti-terralogista, que o poeta (ou, melhor, o sujeito poético) se dirige ao seu interlocutor, um outro, seu “irmão caboverdiano” (“Nha armun”), dissecando as agruras e as armadilhas todas do caminho longe da emigração: “Dexa família e ka nada/Dexa tera e suportavi/Ma dor di sodadi/E cima dor di duença fraka/Ki ta rukuti bida/Ta legra alma/O ki xintidu kore na bai/Ka ten ramedi/Nen korenti ki ka ta sapa”. E são descodificados as alegadas, mas as mais das vezes ilusórias, maravilhas da emigração e as contraditórias reacções dos emigrantes em torno das notícias oriundas da terra-mãe e que os têm como destinatários privilegiados: “Rodiadu di galantaria/Baxu´l dinheru´l branku/Sta bu força´l trabadju/O ki nobidadi ben na karta/Bu koraçan tristi/Ta bira mas kontenti/Noticia sabi ta fase tchora/Kel kasabi ta dizanimabu”.
E, finalmente, é descrita a terra-mãe deixada para trás com toda a sua gritante pobreza e as suas calamitosas agruras climatéricas, mas também nas múltiplas, resignadas e rotineiras vivências do seu povo e na rica diversidade das suas expressões culturais: “Nha´armun/Aian! Sukuta bu obi//Nos tera e pobri/Di tchada limpu kutelu seku/Rubera baziu/ Rotcha kran ta djobe ceu/Sol forti raganhadu/Ceu azul mar d´anil/Ta suluça na area mortu//Nubris branku ta lora dibagar/Ta kuda ingratidan di tchuba/ Mocinhus na storia/Na sombra d´impena/Noti serenu luarentu/Violon detadu na petu´l kriolu/ Morna maguadu na boka´l kantista/Batisadu kuarta/Kasamentu sabru/Badju sabi na son di gaita/Batuku kenti grogu na kalman/Fogueti na len festa nos guentis/Preta bunita d´odju grós/Kabelu stendedu rostu lorondu/Korpu filadi na nó di sulada/Ta sukudi koxa na finaçan di cimboa”.
Descrita e rememorada a terra-mãe, terra da saudade, nas suas conhecidas características do que outrora foi, e, até agora ainda, é considerada terra madrasta, mas também na pureza e na beleza que moram nos seus seres humanos e nas suas manifestações culturais, na sua funda e convicta vontade de viver, regressa o poeta (o sujeito poético, melhor dito) ao dilema do querer bipartido barbosiano, para concluir pela chave também constante do poema “Holanda”, de Oswaldo Osório (na sua versão revista, publicada n´O Reino de Caliban - Antologia Panorâmica de Poesia Africana de Expressão Portuguesa, Primeiro Volume (Cabo Verde e Guiné-Bissau), organização, selecção, prefácio e notas de Manuel Ferreira, Seara Nova, Lisboa, 1975), isto é, que é na nossa terra que se joga e se vence o match final, num tom nítidamente anti-terralongista, na sua dimensão radicalmente antipasargadista. Com efeito, diz o poeta Kaká Barboza a concluir o poema “Ah! Kaoberdi”: “Nh´armun!/Aian! Sukuta bu obi//Ê keli ki ata barian xintidu/Ta pon ta boita ta raboita/Cima don-dagu na rubera/ Cima pitada kan-kan/Mi! Mi li!/Djan ba Kaoberdi/La ke kura´l nha duença/ Ramedi nha fronta/Pan bá diskança xintidu/AH! KAOBERDI!/ LARGAU DJA SO SI “. (Assim mesmo, com maiúsculas).
Nesta Primeira Parte (“Son di nos Eransa”) do mesmo livro (Vinti Xintidu Letradu na Krioulu), procede-se ainda à exumação de alguns costumes e tradições da ilha de Santiago, exaltando o orgulho na idiossincrasia do Badio, isto é, do habitante originário da grande ilha caboverdiana e/ou por ela adoptado e com ela totalmente identificado (como é o caso notório de Kaká Barboza, aliás, pública e orgulhosamente assumido e por ele vezes sem conta reiterado, ele que, natural da cidade do Mindelo e, consequentemente, da ilha rival de São Vicente, fez sempre questão de vincar que cresceu e amadureceu como criatura humana caboverdiana na Vila da Assomada e nas suas verdes e rústicas redondezas do interior de Santiago).
Orgulho do/no Badio, e do/no Caboverdiano em geral, mesmo vivendo e laborando nas condições mais agrestes e adversas, como se verifica, por exemplo, no poema “Nha Funku”:
“Nha funku kin fase/Pedra riba´l pedra/Tras dun kutelu/Kin t´odja fundu´l nha rubera/Nha funku di pedra soito/Kumera´l karapati/ku fodja´l kana/Nha funku dimeu/Ki mi ki fase ku mimu/Pa nha gazadju/Nha sombra/Nha mundu/Nha tudu/Berçu´l nha mininu/Palaciu´l nha mudjer/Nha funku dimeu/Ki ten sucegu/Pas di Diós/Nha funku ki mi ki fase/Pa nha gazadju/Nha sombra/Nha mundu/Nha tudu/Nha tudu”. (Versão do presente poema, como, aliás, de todos os versos anteriores e dos poemas seguintes, na grafia do próprio autor, publicada paralelamente, e na mesma edição, com a versão vazada no chamado Alfabeto do Mindelo, da responsabilidade da Direcção-Geral da Cultura, e, presumivelmente, da autoria material de Manuel Veiga, o principal (f)autor do mesmo Alfabeto do Mindelo)
Ou, ainda, de forma mais afirmativa e (rei)vindicativa, no poema “Ximbia Pingu d´Oru”:
“Ximbia pingu d´oru/sai na aitu´l kutelu/ê djata djatu/ê pupa púpu/kudi na fim di mundu//El si nobidadi/kore seti légua/seti rubera/seti mar/seti mundu/finda na Piki´Ntoni// Ximbia pingu d´oru/tem konbersu doxi/cima ago´l Tchororó/cima figu ponta´l rotcha/ki durba santchu/ku si sabidesa//El ê roskon cima prispi/kontenti cima kabalu/ ingratu cima lobu/ki tem tudu/ka tem nada//Ximbia pingu d´oru/tem ardilu fiticera/xintidu d´inkantada/seti bida cima gátu/seti dia cima sumana// Ximbia pingu d´oru/ka kurtu ka kumpridu/ka di po ka di pedra/ka bodi ka kabalu/ê cima Nhordés fase´l”.
A mesma personagem, Ximbia Pingu d´Oru, reaparece no poema “Diviza” em vestes típicas desse género da poesia tradicional caboverdiana da ilha de Santiago, de inabalável bazófia e orgulhosa (diria até, ególatra) exaltação do eu do sujeito poético: “Mi ke Ximbia pingu d´oru/komparadu na Markes di Pombal/faka tchuntcha ponta´l margura/ ki bainha kuátu rapariga noba//Mi ke cima nhu Duki/ki deta baxu pe di sodadi/ manxe baxu pe di dinheru//Mi ke mi!//Bodi bedju rau paduku/obu rastera kifri na tchon/ka ta pintadu manta k´ol/nin ka ten konta ku manel mangradu/ki fari toru di piskos largu//un nhápu ta nhapati/un soku un keda/un konbersu/un kansera´l xintidu/´nta maki ta guengue//´nta vipu ta tchós//Rrrrr/Mi ke mi!/petu d´açu/ ´ndjarda´l prata/koraçon d´oru/ki ta da mundu ki kuda”.
É igualmente festejada a mulher do campo, do interior rural de Santiago, na sua grande maioria de tez negra/castanho-escura, e as expressões culturais afro-crioulas, com destaque para o batuco, em poemas fundados na paixão amorosa, como em “Dju” e “Aian, fidju fémia”, ou nas típicas tradições santiaguenses de conquista e cativação da mulher amada pela palavra dita e falada, como no poema “Pidiçan di palavra”:“´N foga dentu´l mi/´n ben dizabri ku nha/pan pazigua tormenta/ki ata pokentan nh´aima/nha diskuipan si na ta bai/´n tadja nha/ma otu guetu ´n ka ten/ê ti si ki ´n atcha môdi/si berdadi na lei/ta lebia kastigu/perdan pididu ta sirbi amizadi/kombersu papiadu/ta diskarga xintidu/dja kre diklaradu/ta mansa vontadi.//Nha sumara nha ten ku mi!//Na kantu nu kontraba/ki nos odju fase kuatu/´n ten ma xintidu kontan/cima ki Diós nance nha/distinadu pa nu kre/si ten kre/dja kre/forti kre/di meu ê forti kre// Nha sumara nha ten ku mi!//Pa nin ki kombersu/ê ladron di tempu/Kamin di kasa ê di ruspetu/´n ta fla/pabia ´n ten ki fla/odju ki odja nha/boka ta fla sen xinti/ koraçan ta kre sen kuda/força´l nobu ta ´ngasga dentu d´ómi//Nha sumara nha ten ku mi!// Nha kombersu ê ka flar di boka/nha krer ê di koraçan sen spinhu/na buskar di ken ki ´n kre/xintidu mostran nha/tumodi alanu li/na sabi o na kasabi/na midiçan di nos distinu/si nu djunta nos krença/nun kusa sô/´nparu nos distinu/ê la altar di Djizus/ palabra ´n ta pidi nha/cima pidi kristu na pó di kruz//Nha sabe sabedu/pa na boita di sumana/nha dan un rezan diklaradu/pa nha flan sin certu/o nau diklaradu/dicididu pa tudu tempu/ pan sabe mo ´n ta manti/si nafragadu na margura/o na furtuna mon di nha//Aian!//N ka ta tene nha má ki si/si ´n ata boita nha kaminhu/ku koraçan diskançadu/má inda xintidu/ta fikan ta matuta/nun kudar diskunfiadu/pabia tudu sta na mon di nha//Nha sabe sabedu/´nton nha ben flan e ma môdi”.
Tal como em Kaoberdiano Dambará, a noite e o negrume da escuridão detêm um importante valor simbólico, pois que, além de propiciarem resguardo e refúgio, permitem que as estrelas (neste caso, as mulheres amadas) contrastem com eles (isto é, com a noite e o negrume da escuridão) e brilhem em todo o seu pleno fulgor. É assim que no poema “Dju”, a mulher amada é caracterizada como “preta-preta sima sukuru/sorizu brilianti/odju´l strela sima nha sonhu”.
No poema “Aian fidju fémia”, diz-se da mulher amada: “Bu korpu é noti ki bafan nha mágua/Bus odju é luz ki limian nha petu/bu falar/bu sorizu/é son kenti di batuku/ki sukudi koxa´l rapariga noba”.
1.3. Segunda Parte: ”Son di Ravoluçôn”
Em “Son di Ravoluçôn”, a Segunda Parte do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, pontifica a louvação da revolução em poemas de visível tom panfletário e assumido teor mensageiro revolucionário, característicos desses efusivos e heróicos tempos de outrora (na bela expressão francófona de Mário Fonseca - Les temps heroíques de jadis-, aqui traduzida para o português), todavia nem sempre despojados de uma (re)buscada e expressiva literariedade e sempre imbuídos de uma grande riqueza metafórica, aliás, característica da poesia de Kaká Barboza, incluindo daquela de teor político-militante mais nítido e evidente, por vezes descomplexadamente patenteado e denunciado nos próprios títulos, como se pode constatar nos poemas “Konxenxa e arma”, “Puema pa um militanti” (portador, por três vezes, do belo refrão “áncia gana kudi na luta”, que, depois, também por três vezes, se altera, em rítmica variação, para “áncia gana di vence na luta”), e, sobretudo, “Son di Ravoluçan”: “Son di ravoluçan/ (…) e fidju di un dia di sonhu/ki afligi petu´l fidju nos tera/ki korda pensamentu/i spanta konxenxa/di nebua´l dominaçon/ di kastigu sofrimentu/ki kiria na floresta´l kudar kansadu/ regadu ku sangui ferbedu/na rubera vontadi pobu (…) Son di ravoluçan/ (…) e limiar di un xama/ki cendi sen dia di paga/e disparu di un bala/sen distinu pa tchiga (…) Son di ravoluçan/ e tempu nobu/ ki ta nance na kada dia ki manxe/ta omenta na kada noti ki kai”.
Na Segunda Parte (“Son di Ravoluçôn”) do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu também se celebra a liberdade pátria conquistada mediante a tenaz e perseverante luta do partido da estrela negra, “da negra cor do meu irmão” (“strela nha luz/negu (negru) kor di nha armun”, do poema “Luz di nha Strela”), ao mesmo tempo que se reafirma a esperança num futuro de progresso, bem-estar e felicidade para o povo de Cabo Verde e de prosperidade, fraternidade e igualdade para e entre todos os povos do mundo, como expresso, por exemplo, no poema “Dia”:“Dia!//Flan ki dia ki bo e nha dia/´ntodjabu ta bai/ta bai ta pasa/ta kore mundu/kore tempu/ i ami nada bu ka ta flan//Dia!//Ka bu dan bu furtuna/nen bu morti sucegadu/nen bu sombra mas fresku/ki fari bu noti mas luminozu//Dia!//Pa mi so bo e nha dia/so bo e maior ki nunca/dia ki povo di mundu/ser tudu-tudu igual”.
A celebração da Revolução não significa todavia a ocultação e/ou o escamotemento das muitas questões que ainda afligem as pessoas comuns do povo no seu sofrido e atribulado quotidiano.É o que fica patente na abordagem crítica dessa realidade de agruras múltiplas e muitas carências no poema “Puema di o ki´n tchiga”, colocado no livro curiosamente logo a seguir aos poemas de militância, exaltação e louvação revolucionárias (os já citados, bem como "Mininus d´independéncia"):
”Nha puema sa ta ben di tchada dentu/undi ki padja ki nance dja ká more/di rubera/undi ki agu kore e dja ká seka/di pé di monti/undi ki ti sombra dja bira minguadu//Nha puema sa ta ben di ponta´l praia/undi ki soris/dja ngrosa mar/di suburbu/undi ki kabra ku galinha e pesoa´l família/di tetu rendadu/undi ki mês ten korenticinku dia//Nha puema sa ta ben di kalker manera/undi ki ka ten tempu ruma letra/di tereru/undi ki batuku e tempra konxenxa/di tamboru/undi ki kada son e un sinal d´avizu//Máá!/O ki´n tchiga mi ku nha puema/ken ki t´obil e kontadu na dedu/pabia si palabra e poku raduzidu/ma ku ordi rixu ki bale pena//O ki´n tchiga mi ku nha puema/konta justu ten ki fasedu/ku tudu sinal di tabuada/ + - × : tudu ken ki ben ku mi”.
Esse olhar crítico, aberto ao mundo das pessoas comuns e convictamente solidário com elas, nas suas muitas e diversas atribulações, na desesperada contabilidade dos seus persistentes sofrimentos e desgraças, muitas vezes catapultados no seu paroxismo catalítico por uma natureza avara e madrasta, mas onde também persiste a resistência (“Nha puema sa ta ben di kalker manera (…)/di tereru/undi batuku e tempra konxenxa/di tamboru/undi ki kada son e un sinal d´avizu”) e se exige justiça (“O ki´n tchiga mi ku nha puema/konta justu ten ki fasedu/ku tudu sinal di tabuada”).
São os ingredientes socioeconómicos, cultural-identitários e políticos inventariados no “Puema di o ki´n tchiga” que, no esplendor todo das misérias quotidianas, mas também da existência e da persistência humanas que perfizeram a estóica singularidade do povo das ilhas, sintetizada no poema “10 Mustura na Bespa 11”, a seguir transcrito e que, a nosso ver, representa um conseguido louvor poético da síntese dialéctica e, nessa sequência e correlativamente com ela, da mestiçagem biológica e cultural, tão querida dos caboverdianos porque assaz marcante e estruturante da sua dolorosa e heróica História e da antemanhã do vindouro futuro radioso das ilhas, então, nesses anos oitenta do século XX, ainda a tracejar e a esboçar para o desenho, quiçá, do esfusiante “Poema de Amanhã”, de António Nunes, consabidamente inundado de optimismo ontológico e de esperança para o povo da ilhas, não obstante os muitos escolhos e agruras que persistem em tolher o seu quotidiano e o seu destino:
“10 MUSTURA NA BESPA 11//Tchoru mustura ku kanta/da/Puezia/Duzusperu mustura ku sperança/da/Rizistencia/Bai mustura ku fika/da/Konxenxa/Froxa mustura ku tene/da/Firmeza/Mintira mustura ku verdadi/da/Dicizon/Gana mustura ku fase/da/Luta/Branku mustura ku pretu/da/Kaoberdianu/Oxi mustura ku manhan/da/Bespa/Tera mustura ku mar/da mundu/Pasadu mustura ku prisenti/da/Nobu/Un mustura fika pa fase/Sploradu + Splorador/Pa da Djustiça/Si ka mustura kontu vai atras/STÓRIA DESDI PRINCIPI”. (Assim mesmo, em maiúsculas).
São as agruras e os escolhos acima referidos que consubstanciam o último poema (“10 Cilindru na Mutor di Pedra”) do livro Vinti Xintidu Letradu na Kiolu, o qual funciona como um balanço da História multissecular do povo das ilhas que, obrigado e obrigando-se a enveredar pelos caminhos íngremes de uma História pejada de atrocidades, mas também de heroísmos anónimos, não se deixou atalhar e vergar na sua marcha até atingir finalmente o destino da sua longa viagem com o hastear da bandeira nacional da independência (“Bandera n´astea da sinal di riba´l tchada”). Franqueada a grande e almejada porta da liberdade pátria (”riba´l tchada”, defronte do “portão das nossas ilhas”), havia que continuar a caminhar para perfazer a essência e a substância da infinita caminhada pela História por vir e a fazer e moldar, assim, os múltiplos e (ir)reconhecíves perfis dos caminhos do futuro, pois que o motor que vem fazendo rodar a engrenagem do destino do povo das ilhas continuava funcional, intacto e incólume, ademais ciente de si mesmo no espírito e na cabeça que o animava e o conduzia, porque miraculosamente dotados de uma identidade com nome próprio, de uma marca distintiva, integralmente assumida (“10 cilindru na mutor di pedra/inda ka kança/inda ka baria/pabia si marka ê K.DIANU/RCV 4033 -30000 H”).
Nesta óptica, somente a necessidade da reflexão para a melhor e mais racional escolha das melhores opções possíveis num dado momento histórico, numa determinada ambiência sociopolítica e num determinado contexto geo-estratégico pode justificar uma qualquer instantânea suspensão, todavia sempre aparente (“Pára so pa toma sumaru/Pa dipos..”), aliás, em estrita observância das consignas cabralistas “pensar pelas nossas própria cabeças”, “andar pelos nossos próprios pés”, “pensar para agir melhor, agir para pensar melhor”, na contínua (re)construção e na ininterrupta modelação do destino do povo das ilhas (as nossas dez ilhas afro-atlânticas e as outras tantas “ilhas” constitutivas das nossas diásporas espalhadas pelo mundo), sempre posto nos seus tempos pós-coloniais ante o dilema de escolher entre duas possíveis grandes vias, todas elas por demais dificultosas e/ou, ilusoriamente ou não, auspiciosas: a via esquerda feita de sucessivos obstáculos e configurando-se como implicando um percurso de longa duração (“pa skerda kutelu tcheu kaminhu longi”); a via direita, aparentemente mais fácil, mas pejada de armadilhas, de perigos e de ameaças (“pa zdreta dixida faxi ladera di prigu”). Felizmente que possibilidade da livre escolha entre vários e diversos, amiúde contraditórios e bifurcados, caminhos engendrados pelas múltiplas e inesgotáveis encruzilhadas da História, vem cativando e legitimando cada vez mais o povo livre e soberano do nosso Sahel insular no seu permanente desiderato e na sua inalienável vontade de almejar um futuro sustentável para todos os seus filhos, nas ilhas e diásporas, tal como, aliás, interpretado e compreendido nesse derradeiro poema do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, de teor e perfil a um tempo assaz resilientes e construtivistas:
“10 CILINDRU NA MUTOR DI PEDRA//500 anu ta gueme na subida/ku karga piçadu dia ku noti/Na kurba kontrakurba/Kaminhu marguradu/Ó ki té buranku kai/bira si pedra lolo/ta dismerdia na mei di tchuba/ta tepu-tepu na sekura´l sol forti//10 cilindru na mutor di pedra/ronka tchoru/pita sperança/ladu ta bai ladu ta ben/kaminhu runhu/subida ingri//Bandera n´astea da sinal di riba´l tchada/ma riba´l tchada ten dos kaminhu/pa skerda kutelu tcheukaminhu longi/pa zdreta dixida faxi ladera di prigu// 10 cilindru na mutor di pedra/inda ka kança/inda ka baria/pabia si marka ê K.DIANU/RCV 4033-300.000 H/Pára so pa toma sumaru/Pa dipos…”
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De grande interesse, neste ano de 2020, subsequente ao mês de Novembro do ano da atribuição à Morna do Estatuto de Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, é o poema “Serenata” de um cantautor/poeta/compositor que, além de criador de um estilo musical próprio a que atribuiu o sonante nome funambá (junção dos termos e das expressões musicais funaná e rumba (africana) e na poesia criou o termo finata (fusão entre os termos finason e serenata), é também um conseguido e festejado compositor de mornas, coladeiras e outras criações em outros estilos e géneros musicais caboverdianos.
Tais eclectismo e hibridismo culturais demonstram, mais uma vez, que, à semelhança de outros cultores da poesia e da música caboverdianas, e mesmo no caso extremo da radical negritude político-cultural de Kaoberdiano Dambará, a afro-crioulitude poética e cultural praticada pelos criadores literários e musicais caboverdianos significa mais, e sobretudo, a ênfase no resgate da matriz afro-negra e da dimensão afro-crioula da cultura nacional caboverdiana, de natureza mestiça afro-latina, do que a renegação ou postergação excludente de outras matrizes e dimensões da mesma cultura, incluindo daquelas de mais acentuados teor, cunho e predominância matriciais europeus.
No caso do poema “Serenata” é a morna que é louvada e exaltada enquanto expressão cultural islenha afro-latina e manifestação típica e total (música, dança, canto, poesia) da crioulidade caboverdiana, como, aliás, também ocorre com outros géneros musicais caboverdianos, como o batuco, o funaná, a coladeira ou o talaia-baxo.
É o que se pode comprovar da leitura atenta e completa desse poema da Segunda Parte, que, aliás, inaugura, do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu, de Kaká Barboza, lapidarmente intitulado “Serenata” e que a seguir é integralmente transcrito: “Dexan toka nha serenata/dexan toka nha violon/pan kunpanha morna/pamo el e nha bida/e bater di nha koraçan/cima morna e nha sangui//Serenata//E luz di nha kaminhu/na noti sen lua/ rasguardu di nha korpu/na friu ratchadu/di giada´l mardugada//Serenata//E erança ki Bilaki/B. Léza, Ogeni Tavaris dexan/ka bu stroban serenatia/ka bu stroban kanta morna/sinau e tran Kaoberdi//Dexan ku violon trabeçadu na petu/ku Sol Menor na poziçon/pan kanta ligria/kanta tristeza/pan tchora margura/ i grita ravoluçan na son di korda//Dexan na rua sukuru di nha morada/ta serenatia riba/serenatia baxu/na obidu´l nos kriola/na ginela trabankadu dun fidjo femia//dexan serenatia/pan dispidi di noti/pan recebe madrugada/ta kanta morna/pan tirmina serenata”.
2. SON DI VIRASON, EM TEMPOS DE RESSENTIMENTO, DE RUPTURA E DE MUDANÇA DE PARADIGMAS POLÍTICO-IDEOLÓGICOS E SIMBÓLICOS
2.1. Exaltação da Tenacidade do Povo Caboverdiano, Espírito Crítico e os Muitos e (In)Decifráveis Indícios e Sinais de Mudança
No seu segundo livro, Son di ViraSon (editado em 1996, pela praiense Spleen-Edições), também de poesia em crioulo, agora escrita seguindo estritamente as normas estabelecidas no ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdiano), Kaká Barboza embrenha-se a fundo nos muitos afazeres, nas múltiplas turbulências e nas incontáveis atribulações do povo caboverdiano durante o longo período colonial, como se pode verificar, por exemplo, no poema “Pa sabedu na kontisimentu”, que discorre sobre a constituição geomorfológica das ilhas de Cabo Verde, a génese histórica do seu povo (“ka tinha podu/podu fika/fika transa/transa ratransa/nanse Kauberdianu”), as suas tragédias históricas e as suas calamidades naturais até à sua constituição em nação caboverdiana soberana (“Nton!/Rananse na pontu final/di sinku éra sinku gerasan/kauberdi nasan/nasan pa tudu ténpu/ta bôia na dizaforu´l mundu”).
Continua, ademais, a exaltar e a enaltecer o homem caboverdiano, a indagá-lo na busca e na tentativa de decifração dos enigmas do seu destino e a incentivá-lo na prossecução do seu longo percurso histórico, como nos poemas “Na Ton di Pé Firmi na Txon”, “D´Un y d´Otu Banda”, “Nu Ten Ki”, “Pa Nin Ki” (“Djoka di Mai!/Ómi ka debe dizâria/nen kordadu/nen na sonu/nen ki dilubri kóre/lânsia na txada//ÓMI MA DJA XINTI ÓMI/si konsénsia klaru di mundu/é lémi si kabésa/véla si vontadi/proa´l si koraji/pa ratxa agu/ku txon ku tudu/ta bai ta kanba na ténpu (…)”.
É nessa senda pedagógica de educação cívica para a perene verticalidade e para o pleno desabrochamento das melhores virtudes das criaturas humanas e do inteiro respeito pela dignidade de todos os seres humanos que se integram os exemplares conselhos e ensinamentos constantes do poema “Konsedju Nha Mon”, não por acaso dedicado aos seus irmãos, ele que efectivamente foi o primogénito e o mais velho em sabedoria de todos eles, irmãos e meio-irmãos, irmãs e meio-irmãs:
“Dianti di ruspetu/tratamentu é dretu//dianti di bon tratu/ka ta sedu ingratu// dianti di razon/ta pididu perdon//kada kuza ten ki bá na si ton/pamó kada kenha ten si kondon//Má s´é pa bu tradu ku mon/bo pa bu kruza mon/anti kume leti ku mamon/ô tonba na fundu-l kobon/s´é pa sankon/sédu rafilon//es k´é KONSEDJU NHA MON/PA TUDU NHAS IRMON.” (Assim mesmo, em maiúsculas).
O homem rural de Santiago, o seu orgulho pessoal, a sua ´vigorosa ética de trabalho e as suas tradições culturais ocupam um lugar destacado no livro Son di ViraSon. É o que se pode verificar, por exemplo, nos poemas, “Briu di Badiu”, “Rafiason”, “Sétenbru”, “Na Pasu d´Azágua” e, sobretudo, no poema “Mi é sima mi própi”.
Sejam transcritos três desses emblemáticos poemas:
I. “Sétenbru”:
“Xindu di Luka Manaia/arma si faka na préga/é ba finka mandióka//Téki-taki-txas/pega kebra finka/mês di seténbru/lua di txuba/planta sakédu/na régu ta bai//Ku sol dobradu mei-dia/planta finkadu na régu/el pustadu ta dorna si órta//Djaki pupa pidi padja/ben n´el xintidu di ténpu/é da rinkada róstu pa kaza//Xintadu na pó di si moxu/ta kuda kebra-djudjun//pa korta sóris é pinga si grógu//Téki-taki-txas/pega kebra finka/mês di seténbru/lua di txuba/rabentu nobu/na régu modjadu//Xindu di Luka Manaia/si nada ka mufina-l si kalku/na volta d´anu ta ten mandióka?”.
II. “Na Pasu d´Azágua”:
“Na pasu d´azágua/oki bu odja pulígunu nha korpu/na ladera ta rosa padja/ nkurvadu riba d´inxada/suadu/modjadu/ta pinga suor/ta modja txon ki ta suste-m//Bu pode fla/m´é Kauberdi/ki sa ta berdi na nha mô/sima bandera´l nha speransa/spetadu n´alma nha dizeju bibu/na simitériu nha petu”.
III. “Mi é sima mi própi”:
“Mi é transadu/má sen burgonha/ta buska ten/más sen oronha/konbersu klaru/ka trapadjadu/skóla poku/má ku postura/ka letradu/ka ta nganadu/sen dinheru/ka trapaseru/ka bá kórtel/ka tomadu nómi/ka débe ónra/na banku grandi/ki fari na pó/di djustisa//ka di prasa/ka ten inveja/ka donu txon/nen proprietári/ka sobérbu/nen intereseru/ka mufinu/nen diskudadu/ka faronperu/ nen mal tadjadu/ka mintrozu/nen lixonxeru/ ka rabeladu/nen malkriadu/ma ndis kontu/bixêru mansu/ten leti sértu/na tudu mai//diskunfiadu konbérsu txeu/ka ta kunpradu ku amizadi falsu/ruspetu finu disprézu sértu/ pa ma`lobadu/ka ten xintidu/na kuza genti/ka ten galon/ka txora poi/na piskós só/kolarinhu branku”//ka purtuges/ka ninhun d´es/ka nbarkadistu/ka ten sodadi/ka klandistinu/nen pé na boti/mantega´l leti/midju´l téra/spritu batuku/alma sinboa/faze-m kel ki/Ami N é/ KAUBERDIANU/ka konparadu/ómi firmi/riba´l mundu/pa purba mundu/legradu/ô rukutidu/faze bu kalku/djobe bu djurga/MI É SIMA MI PRÓPI” (assim mesmo, com maiúsculas).
Embora mais próximo de uma letra musicada do que de um poema propriamente dito, sobretudo tendo em conta a totalidade da poética em crioulo de Kaká Barboza (quiçá, por isso mesmo, não integrando nenhum dos seus livros de poesia publicados), interpretado na poderosa voz de Zeca di Nha Reinalda com coros do irmão Zezé di Nha Reinalda e arranjos musicais e orquestração do multi-instrumentista Paulino Vieira, o texto versificado “N ka pur si” é construído, do ponto de vista do conteúdo substancial da sua mensagem, como se pode, aliás, constatar pela transcrição feita a seguir, na linha da poemática de um eu badio (ou, mais genericamente, de um eu caboverdiano) orgulhoso e afirmativo de si próprio, constante, por exemplo, do poema “Ami é sima mi própi”, mas no caso de “N ka pur-si”, na conhecida linha anti-terralongista característica da poesia em crioulo de Kaká Barboza, para se impor e/ou dar conta de si em face da mulher amada/desejada e de eventuais rivais emigrantes, menos receados, se “lisboetas” (isto é, emigrados em Portugal), mais temidos se “holandeses” (isto é, emigrados nos Países Baixos, mais ricos e desenvolvidos e detentores de um maior nível e qualidade de vida que a antiga potência colonial e ex-metrópole de Cabo Verde):
“Dja N kre-bu/Dja N kre-bu//Dja N kre-bu fidju-fémia/Dexa-m dizabri ku bó/Pa N da-bu konta di nha nobu//Kel poku ki tera da-m/N trabadja N djunta di-meu//Lisbueta ta inveja-m/Olandês ka fika-m pa riba//N ta faze-bu sinhorinha/Na midida´l bu dizeju/Faka txuntxa ponta´l margura/Na baínha mon di si donu/Aiai fidju-fémia/Mi ka bá Lisboa/Mi ka bá Olanda/Má N ka pur-si/ Kel poku ki tera da-m/N trabadja N djunta di-meu//Lisbueta ta inveja-m/Olandês ka fika-m pa riba//N ta faze-bu sinhorinha/Na midida´l bu dizeju/Faka txuntxa ponta´l margura/Na baínha mon di si donu”.
Alguns poemas de teor predominantemente telúrico, depois de musicados, foram também interpretados por Nhonhô Hopffer (nominho e nome artístico do arquitecto Frederico Hopffer Almada) no seu festejado disco de estreia Nhara Santiago.
São os casos dos poemas “Téra Madrasta”, de funda e magoada lamentação do destino aziago dos filhos das ilhas, fustigados pelas estiagens e condenados a amar a sua terra madrasta pela permanente destilação da dor (“Ó téra madrasta/kal k´é forma di midi amor/kal k´é óra di santas grasa/ki sina é es di krê-bu ku dor/signu distinu di tudu un rasa”) em nítido contraste com “Kor di Fodjada” (o outro poema-canção de Kaká Barboza interpretado por Nhonhô Hopffer, mas não integrante de nenhum livro publicado do malogrado poeta), de esfusiante esperança num amanhã repleto do verde das setembrinas folhagens dos milheirais e da água a correr nas levadas, num tom aparentemente aparentado ao constante da segunda e eufórica parte do “Poema de amanhã”, de António Nunes, sendo que “Téra Madrasta” representaria o equivalente da primeira e disfórica parte desse mesmo festejado e profético poema.
Leia-se, para mais e melhor elucidação dos interessados, o teor completo do poema “Kor di Fodjada”, de Kaká Barboza, também musicado por ele e cantado por Nhonhô Hopffer:
“Labrador di nha terra/N ten fé/Ma águ ta volta pa labada/Pa bu pode trabadja bu txon/Sen ideia ma bu ten patron/Ómis ku mudjer mó na inxada/Ta labra téra pa simentera/Na kada fundu rubera/Mosinhus ta pastoria limária//Nha fé é fundu sima mar/Nha speransa ten kor di fodjada/Ma kusas ta volta pa lugar/Óki águ disponta na labada//Labrador di nha tera/ N ten fé/Ma águ ta volta pa labada/Pa plantas mata si sekura/Pa bus odju engorda na verdura//Boi na trapitxi ta pila/Sukri na kobri grogu na fornadja/Batuku finkadu na tereru/Ma sábi bali más ki dinheru//Nha fé é fundu sima mar/Nha speransa ten kor di fodjada/Ma kusas ta volta pa lugar /Óki águ disponta na labada”.
Anote-se todavia que a esperança aludida e mantida acesa no poema “Kor di Fodjada”, de Kaká Barboza, é a esperança no regresso do paraíso das águas, muito conhecido e almejado pelas gentes humildes, remediadas e abastadas dos campos de Santiago e de outras ilhas agrícolas de Cabo Verde, sobretudo naqueles sítios localizados em regadios e vales verdejantes ou nas suas redondezas. Essa esperança é, pois, a esperança no regresso da fertilidade de uma terra de novo bafejada pelas chuvas e, assim, encharcada e inundada das suas águas, depois, conduzidas pelo labor dos lavradores aos tanques de rega, às levadas e a outros engenhos humanos capazes de, mediante os lavores agrícolas dos lavradores, tornarem a terra fértil, produtiva e não mais anametizada como madrasta, porque propiciadora de colheitas e de abundância de frutos. As alfaias e o demais instrumentário agrícola de que se serve o lavrador do poema “Kor di Fodjada” e a ambiência que o rodeia são os tradicionais e típicos dos meses das azáguas (a enxada, a levada, a fornalha com o trapiche e os bois rodando nas almanjarras, o cobre, o grogo, o mel, o açúcar mascavado, a alegria esfusiante das mulheres no batuco repicado, as crianças cuidando das alimárias nos campos de pastoreio, as ribeiras verdejantes de águas e plantas, etc.).
A esperança a que se alude no poema/canção “Kor di Fodjada” é, pois, a esperança no regresso a um tempo, que é um tempo sobretudo climatérico e meteorológico, o tempo próprio da estação das chuvas (o mais que almejado tempo das as-águas - ou das azáguas, em registo grafado de forma mais crioulizada), em que o lavrador podia e contava colher em conformada, resignada e beatífica felicidade os frutos do seu labor, porque a terra ainda não sofria tão atrozmente as agora muito regulares agruras das estiagens e das secas mais recentes, se bem que sem as grandes mortandades de um passado que persistiu e se alongou até à década de quarenta do século XX.
Na verdade, tudo parece ter definitivamente mudado a partir da chamada catástrofe ecológica de 1968, abrangente, aliás, não só das ilhas de Cabo Verde (o nosso Sahel insular), mas de todo o Sahel oeste-africano e das suas zonas limítrofes semidesérticas do Corno de África e do Leste de África, na Etiópia, no Sudão, na Somália, e marcada por imensas e catastróficas carências e penúrias alimentares provocadas por estiagens e grandes e fulminantes secas, alongadas no tempo, e que, a partir de então, tornaram-se regulares e quase permanentes, em vez de intermitentes, como eram num passado mais longínquo.
Dito de outro modo: ao longo da nossa História, foram-se encurtando cada vez mais os lapsos de tempo entre a ocorrência das as-secas (na feliz expressão inventada pelo romancista neo-claridoso de tendência estético-ideológica nova-largadista Onésimo Silveira), tornando-se assim a ocorrência de chuvas e de boas as-águas (ou azáguas) a excepção climatérica, em vez de serem a regra ecológica com excepcional e, eventualmente, intermitente ocorrência das as-secas.
Por outro lado, e num contexto ecológico em que as boas as-águas eram a regra predominante da vida agrícola, no “Poema de Amanhã”, de António Nunes, a esperança é de mudança total de paradigmas para o advento de amanhãs outros, realmente cantantes, para quem lavra o solo com o suor do seu rosto, sem todavia poder colher na sua inteireza os frutos do seu labor.
Primeiramente, de paradigmas político-culturais, económico-sociais e societais (“essas terras que se estendem (….) serão nossas”). Neste item, é interessante a alusão do poema de Kaká Barboza a um lavrador “sem patrão”, certamente convicto da oportunidade política e social de uma reforma agrária conduzida segundo o princípio revolucionário “a terra a quem a trabalha”, tal como constante dos escritos de Amílcar Cabral sobre futuras mudanças sociais a haver no progressista e socializante Cabo Verde-pós-colonial e veementemente ilustrado no poema “Labrador di Kanpu Largu”, de Emanuel Braga Tavares, talvez o mais paradigmático dos poemas caboverdianos, ademais escrito em crioulo, sobre a premente necessidade da reforma agrária para a emancipação social do camponês.
E depois, e além da mudança de paradigmas político-sociais, propugna-se no profético poema de António Nunes uma mudança radical e visível de paradigmas técnicos e de gestão (“águas correndo por levadas enormes”), susceptíveis de conduzir a uma verdadeira revolução tecnológica para uma melhoria substancial da produtividade agrícola e um aumento da produção nos campos agrícolas de Cabo Verde, como, aliás, num recente passado pós-colonial pretenderam os arautos da reforma agrária e, em tempos ainda mais recentes, quiseram os defensores das muitas virtudes das barragens e de outros símbolos de assinaláveis mudanças técnicas no relacionamento dos caboverdianos com a confrangedora e impenitente escassez da água com vista a garantir a segurança alimentar e o abastecimento dos mercados, incluindo os mais virados para o turismo, enfim, para a dinamização e a optimização do agro-negócio caboverdiano.
Ao mesmo tempo que exalta o homem caboverdiano de Santiago inserido na sua multissecular História, o poeta faz incursões específicas a determinadas ilhas com as quais o autor mantém fortes afinidades, designadamente à ilha de S. Vicente (onde nasceu e, na idade adulta, fez a tropa, tornou-se sindicalista revolucionário e viveu por algum tempo, e em cuja variante escreve os poemas “Un puéma pa Lorense”, “Na funde d´nos tude” e “Vistu pa Mágda y Mark”), e à ilha do Fogo (de onde são naturais os seus pais e em cuja variante do crioulo, aliás, muito próxima da variante-matriz de Santiago, escreve o poema “Ki nporta-m la”, de apego telúrico à terra-mãe em face de desafios vários, quais sejam a inelutável passagem do tempo e os seus efeitos corrosivos sobre a robustez e pujança físicas do sujeito poético, a atracção por outros mundos alheios, repletos de beleza e riqueza, mas onde o sujeito poético se sente estranho, a constante reiteração desse mesmo apego telúrico ao amado chão das ilhas (“Mi gó!/ ku bu fra/ku frádu fra/ô nton mundu fra (...) Ki nporta-m la/dixa ténpu koré/ta galopiâ suma kabalu/dixa mundu andâ dizandâ/ku volta sima e krê/Má mi N ta fika li/na nha txon di sekura/di natureza sobérbu/ta djangrabí ku ténpu/na murmuransu-l mar (…) Li sin!/baxu´l mi!/baxu´l nha sónbra/baxu´l nha dôs pé finkadu/sta un txon di stória/ki kunsa inda ka kabâ/un txon ki strumâ konxénxa firmi/na fidjus diklaradu/ka só du N fika pa ka kai/é fika ma pa ka kai mé/nen ku disgrasia-l teramoti/nin ki géra satadjâ mundu//Dja fra!/Dja fika fradu/Ki nporta-m la”).
Concomitantemente, o poeta procede à dissecação exaustiva dos males, dos malefícios e dos flagelos sociais, contemporâneos dele e desses entusiasmantes e esperançosos tempos pós-coloniais, alertando o poder constituído para a necessidade da sua tempestiva superação, como no poema “Konjuntura”, similar no seu tom crítico dos males e dilemas dos derradeiros tempos do regime de partido único em Cabo Verde a muitas canções políticas interpretadas pelos célebres conjuntos/bandas musicais praienses “Bulimundo” e “Finason” e substância irreverente e contestatária de muita da poesia produzida por membros da nova geração literária eclodida na segunda metade dos anos oitenta de novecentos:“(…) N krê dexa mensaji grandi/santadu na paredi di ténpu/skrebedu sô ku letra grandi/pa diskonfundi kauberdianu/pa raferénsia di kauberdianu//trabadju txeu pagamentu minguadu/malandru kel sta midjor konpensadu/sen diploma tudu é mal ruspetadu/ami atxadu ma sta ku odju fitxadu//bon ku mariadu ka sta diferensiadu/bon ku dretu ta rezulta kaladu/órdi riju y tratu sta mufinu/si bu ser bo própi bu txomadu trakinu//distinu é largu kaminhu é konplikadu/ mundu dja bira ka oru ka prata/na pozison entri mata o matadu/manbá ki tiru sai-u pa kulatra//É prisizu ntende konjuntura/pa panhadu tudu si pontu fraku/tenpu sta pidi pa ka dexa dura/si ka ligadu kuza ta braku”.
2.2. Mudança Política, Revisionismo Político-Simbólico e Enfrentamento Político-Ideológico, Poético-Musical e Identitário-Cultural
Ocorridas as mudanças políticas de 1990/1991/1992, o autor enfrenta e confronta os novos detentores do poder democraticamente constituído, apontando-lhes as insuficiências e fraquezas, com destaque para as suas derivas revisionistas nos planos político, simbólico-cultural, e não só, como se pode constatar nos poemas “Joana”, “Dimokransa”, “Konjunturadu” e “Pa Konxedu na Dipoimentu”, os últimos do livro Son di ViraSon.
Anote-se que alguns desses poemas, designadamente “Joana” e “Dimokransa”, musicados pelo autor, tornaram-se muito conhecidos além-fronteiras sobretudo pelas vozes respectivamente do astro caboverdiano Zeca di Nha Reinalda e da estrela caboverdiana Mayra Andrade, e, agora circunstancialmente, no que se refere a "Dimokransa", pela voz da cantora brasileira Valéria de Carvalho que, intérprete recente de “Dimokransa”, também vem interpretando com grande brilho e fulgor a canção “Lua”, do também renomado poeta crioulógrafo, compositor e cantautor Princezito.
No poema “Joana” são descritas as mudanças políticas que ocorreram por (quase) todo o mundo inteiro, a partir da queda do Muro de Berlim e que permitem também a Joana exprimir-se, pela primeira vez, pela sua própria e singular voz, e tendo o poeta como interlocutor e observador privilegiado: “Joana bu pode papiâ tanbe/dizabri un bokadu ku mi/fitxa koraji bu finka pé/sima sóka binbirin//Odja Alemanha paredi dja kai/anu 2000 sta li ta ben/ ténpu bedju dja bai dja bai/nos tudu sta ti pa manhan//Lesti ku Oesti dja pazigua/dimokrasia di noba vaga (…)”.
Todavia, alerta-se logo, e na mesma estrofe, e nas estrofes seguintes, que os problemas globais da Humanidade e aqueles mais específicos de Cabo Verde permanecem persistentes, não obstante a mundialmente festejada irrupção democrática: “ (…) fómi ku duénsa ta kontinua/anos nu ta fika ta spera azágua//Nhu Pulanpa ka sta mininu/má inda é a ta da si ason di grasa/abo Joana ku sais mininu/un dia´l trabadju ta faze-u falta”.
Sendo global, radical e abrangente, a mudança política no sentido da implantação e da consolidação da democracia política plena é também vista pelo poeta como sinónima de incertezas: “Mundu interu sta na mudansa/ ningen ka sabe di si futuru/nos tudu nu tene bida na balansa/pabia nen nhu rei ka sta suguru”.
O poema conclui com uma estrofe que se reporta a uma efeméride maior ocorrida no período imediatamente antecedente no ano do anúncio da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990, quiçá prenunciando-a, pois que nos bastidores do partido único (e, de certo modo, nos círculos críticos e oposicionistas internos) era grande e muita a azáfama no sentido dessa mesma abertura política, fracassadas, ou adiadas, que foram as tentativas da chamada abertura à sociedade civil no Congresso de 1988 do partido único, ainda antes da queda do Muro de Berlim: a primeira visita de um Papa (João Paulo II) a Cabo Verde, era Aristides Pereira o Chefe de Estado, Pedro Pires o Chefe do Governo e Dom Paulino Évora o Bispo da Diocese de (Santiago de) Cabo Verde. “Nos tudu es anu nu toma benson/na Jon Palu Sugundu/na misa grandi pa salvason/di tudu pekador di mundu”.
No poema “Dimokransa” intenta-se dissecar e desmistificar, num tom crítico, bastas vezes cáustico e assaz satírico, o novo poder constituído em resultado das mudanças políticas democráticas entretanto ocorridas com as eleições livres e multipartidárias de 13 de Janeiro de 1991 (afinal, bipartidárias entre o PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) e o MpD (Movimento para a Democracia), excluída que fora dessa inédita disputa eleitoral a UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática, muito esporadicamente também denominada União Cabo-Verdiana para a Independência e a Democracia), na altura um partido implantado sobretudo na diáspora caboverdiana da Holanda, de Portugal e dos Estados Unidos da América, e que não logrou ser reconhecida pelo Parlamento Caboverdiano como partido histórico, à semelhança do que ocorrera com o antigo partido único, e, ademais, nem sequer conseguiu recolher nas ilhas o número de assinaturas necessárias para a sua legalização). Vencidas com maioria qualificada pela oposição emergente, essa vitória estrondosa e surpreendente permitiu a essa mesma maioria qualificada adoptar uma nova Constituição da República, substituir a bandeira nacional, e um pouco depois, instituir um novo hino nacional.
É esse tom avassaladoramente cáustico que perpassa todo o poema “Dimokransa”, como se pode constatar nos seguintes versos: “Kantadu ma dimokrasia/ma staba sukundidu/ma tudu dja sai na klaru/y nos tudu bira sabidu/kada un ku si mania/fla rodondu bira kuadradu/kada un ku si tioria/poi razon pende di si ladu/Ti Manel bira Man-Bia/Ti Lobu bira Xibinhu/ti flanu ta faze majia/ta poi grogu ta bira vinhu//Mintira é pon di kada dia/verdadi ka sta kontadu/nos tudu nu bira finjidu/ku konbérsu di dimagojia//Vida bira sinplismenti/ konsedju bira ka ta obidu/tudu é águ na balai fradu/rialidadi di oji-en-dia// Maioria sta tudu kontenti/ku avontadi na dimokrasia/fladu fla ka ten simenti/dipos di sabi móre é ka nada/Ingles ben toma si txon/San Fransisku bira más sabi/N kre odja rostu Nhu Djon/ta ri ku si kunpradi//Dja skesedu Pépé Lopi/ba rabuskadu Nhu Diogu Gómi/rasusitadu Nhu Kraveru Lópi/ka ta konxedu Inásia Gomi//Ali ben ténpu ditadu Nhu Naxu/ta bira sima juis di mininu/genti djunta grita abaxu/kabésa ki dja perde tinu”.
Nesse contexto de nítido e desassombrado enfrentamento político-simbólico e tendo como actantes no cenário político-ideológico diferentes, adversas, adversárias e controversas narrativas sobre a História pós-colonial de Cabo Verde, o revisionismo político e simbólico-cultural acima referido é fortemente causticado, como se pode especialmente constatar nos versos “Dja skesedu Pépé Lopi/ba rabuskadu Nhu Diogu Gómi/rasusitadu Nhu Kraveru Lópi/ka ta konxedu Inásia Gomi”, do poema “Dimokransa”.
Por outro lado, são também fortemente alvejadas determinadas práticas políticas, consideradas por muitos protagonistas e observadores, sobretudo os colocados então em nichos identificados da oposição política, como o parlamento, alguns jornais e revistas, círculos intelectuais progressistas e de esquerda, como típicas das derivas autoritárias, ainda que democraticamente legitimadas, dos anos noventa, doravante celebrizados, consoante o lugar da barricada de obsevação política, como década miraculosa, ou, pelo contrário, como década famigerada, de todo o modo, perfazendo o decénio completo durante o qual o MpD (Movimento para a Democracia) se manteve no poder com duas maiorias qualificadas (ademais, reforçada no segundo mandato) e se verificaram dissidências internas que levaram à constituição, sucessivamente, de dois novos partidos políticos, entretanto extintos: na segunda metade do primeiro mandato do MpD, o PCD (Partido da Convergência Democrática), de Eurico Monteiro, Jorge Carlos Fonseca, Daniel Lobo, Arnaldo Silva, Alfredo Teixeira, Jorge Figueiredo, etc., e, na segunda metade do segundo mandato do MpD, o PRD (Partido da Renovação Democrática), de Jacinto Santos, José Luís Livramento, António Espírito Santo, José António dos Reis, Simão Monteiro, Victor Fidalgo, Hélio Sanches, etc..
Tal alvejamento poético ocorre sobretudo, e especialmente, no poema “Konjunturadu”, e de forma inusitadamente virulento e contundente: “Mundu balansa ku palavra mudansa/speransa fika na pó di promésa/kaba ku mama sustenta stravagânsia/pa da-m un pon na ponta nha mésa// (…) Fladu ma povu é maior soberanu/E kre si xefi ku mon maradu/Ómi di lei pensa dja ngana-nu/ Sima ki podu ki ta torna tradu/La na komandu stadu fadigadu/ konbérsu nobu ka ten pa fla/língua ku denti sta mitigadu/ka ten pa nho ki fari pa nha//País verdianu téra kastanhu/Fidjus ninhun ka parse ku pai/Ndjutu di sel bazôfia ku stranhu/Sima djustisa na mon di Xupai/Movimentu sta ku pasu trokadu/Barudju finka na porta´l palásiu/ Bandera é fodja-l pagamentu atrazadu/Dimokrasia só na tabérna d´Orásiu (…) Nu ba pedrera rola penedu/Pa nu ka sirbi di kabalu branku/Kaba konfiansa kaba dinheru/Sa ta falidu ku dinheru na banku (...) Donu panfletu kanba na anonimatu/Bira ta parse ma kau sta mansu/Ku diputadus sima lion na matu/toma sumaru sima patu-gansu//Kada interesi dja forma si ala/Fladu m´é présu di dimokrasia/Odja sabidu sa ta ká ruma mala/Sima ki kau ka tene más sirbintia//Ki sta na moda é nomi d´imigranti/Pa tra proveitu di si boa vontadi/Ken ki odja bai Deus ba si dianti/Si atxa sabi pa ka txora sodadi (..)”. .
Neste poema, e apesar das proclamadas opções políticas pan-africanistas fraternitárias do poeta e não obstante determinadas manifestações culturais, como, por exemplo, o batuco, muito ostracizadas no período colonial, conhecerem uma certa e surpreendente revitalização em razão do seu exaltante renascimento e do seu exultante revigoramento no período pós-independência e da sua assídua utilização nas mais recentes e disputadas campanhas políticas eleitorais, não escapam ao olhar crítico causticante de Kaká Barboza,
- nem os africanos negros continentais, pejorativamente chamados mandjacos e ostracizados e desprezados como tradicionais alvos e vítimas de preconceitos racistas islenhos anti-negros, anti-africanos e islamofóbicos (“ (…) Ala mandjaku dja toma sukupira/kau dja rotxa ki nen sentu gudja/ku rabidanti sen kau rabida/y mês d´otubru sen un gran di txuba (…)”;
- nem tão pouco os grupos de batucadeiras eventualmente suspeitos de instrumentalização política por parte do novo poder político (“Mundu balansa ku palavra mudansa/speransa fika na pó di promésa/kaba ku mama pa sustenta stravagánsia/pa da-m un pon na pónta nha mésa//Na Praia Baxu batuku rapikadu/Sidadi Velha kudi baxon/Praia Maria kumedu djatadu/fidju parida ku fómi na Rinkon (…)”.
Torna-se, pois, muito marcante na poesia constante do livro Son di ViraSon o desassombrado enfrentamento poético-musical e a confrontação político-ideológica contra os recém-chegados detentores do novo poder politico e o seu arsenal de recursos político-simbólicos para aniquilar, ou, pelo menos, para tentar neutralizar o seu tradicional adversário político, o antigo partido único, ou seja, a antiga “força política dirigente da sociedade e do Estado”, nos exactos termos do doravante famigerado artº 4º da Constituição Política da República de Cabo Verde, anteriores à revisão constitucional de Setembro de 1990 que, no mesmo artº 4º reformulado, consagrou de jure o multipartidarismo político, aliás, existente de facto desde a Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990, o direito à existência de uma oposição democrática e a possibilidade de alternância democrática dos titulares do poder político.
Como é sabido, durante todos os anos noventa do século XX, o antigo partido único viu-se enredado numa longa e desgastante, se bem que também produtiva, porque renovadora, travessia do deserto, assistindo quase impotente aos vários episódios da mudança então em curso acelerado, quase frenético, e, para muitos, de natureza despótica (mesmo se antecedida e legitimada por uma larga maioria nas urnas) e consumada, como já foi dito, em modos assaz autoritários.
Paradigmática desse radical processo de alteração das bases essenciais da vida política, económica e social, isto é, da revolução pacífica então em curso de concretização no arquipélago caboverdiano, nas palavras de Carlos Veiga, o então líder carismático do MpD e primeiro Primeiro-Ministro da Segunda República caboverdiana, então em processo de implantação nesses, por todos os motivos possíveis e (in)imagináveis, preciosos e inesquecíveis anos noventa do século XX, foi a substituição dos símbolos nacionais trazidos da luta pela independência e pela soberania políticas de Cabo Verde e ilustrativos do pan-africanismo emancipatório que sustentou essa mesma luta, com destaque para a bandeira nacional ouro-verde-rubra da estrela negra (mas também do milho e do búzio, que singularizavam e diferenciavam a bandeira nacional do nosso Sahel insular da bandeira nacional do país africano irmão como era considerada a também denominada República-irmã da Guiné-Bissau), tendo sido o outro símbolo essencial da emancipação político-cultural nacional, o hino nacional “Esta é a nossa Pátria Amada”, mantido em vigência durante todo o tempo (mais de quinze anos) de duração do regime de partido único e durante quase todo o primeiro mandato da governação do MpD, por mor de insanáveis divergências entre as duas alas entretanto formadas no seu seio e que viriam a culminar na constituição do PCD (Partido da Convergência Democrática).
Anote-se neste contexto que, depois de, num quadro unitário inspirado e moldado no ideário pan-africanista de libertação total da opressão colonial e de progressiva unificação do nosso continente, a África-Mãe, ter sido hino do movimento de libertação (bi)nacional, o PAIGC, o mesmo hino nacional, cuja letra é geral e consensualmente atribuída à autoria do próprio Amílcar Cabral, foi partilhado com a acima referida República-irmã da Guiné-Bissau, mesmo depois da falência pós-colonial do projecto de união orgânica entre os Estados soberanos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e, como já referido, até alguns anos depois da aprovação da Constituição Política de 1992.
Constituição Política de 1992, note-se bem, material e formalmente nova, porque aprovada mediante a utilização dos processos de revisão total (em termos práticos e reais, equivalente à revogação e à substituição) da Constituição Política de 1980 (já antes revista, extraordinariamente, em 1988, para acolher a liberalização da política económica do regime de partido único e consubstanciada na chamada extroversão da economia caboverdiana, e, em Setembro de 1990, para acomodar de jure a transição política para um regime político multipartidário) e engendrada numa conjuntura sociopolítica de mudança, marcada pela nova correlação de forças político-partidárias resultante das eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991.
Sejamos todavia realistas, justos e verdadeiros.
Escreveu Arménio Vieira num célebre poema, constante do livro Poemas, de 1981, a sua surpreendente colectânea de estreia poética, que “Não há estátuas na minha cidade”.
Com efeito, e como ocorre regularmente em épocas de mudanças políticas radicais e/ou abruptas, com a independência nacional de Cabo Verde foram derrubadas as estátuas e apeados os bustos representativos de importantes personalidades da época colonial, tendo os mesmos sido devidamente guardados e conservados em depósitos próprios das Câmaras Municipais. Nessa leva couberam os bustos e as estátuas do Infante Dom Henrique (em Assomada), dos descobridores Diogo Gomes (na cidade da Praia) e Diogo Afonso (na cidade do Mindelo), dos governadores coloniais Alexandre Albuquerque e Alexandre Serpa Pinto (na cidade da Praia e, deste último, na ilha Brava), entre outras personalidades simbólicas e representativas do período colonial, mas também do busto do respeitado poeta neo-clássico caboverdiano José Lopes da Silva, provavelmente por ele ter afirmado, nas vésperas da sua morte, ocorrida em 1962, que preferia ver Cabo Verde perder-se nos fundos abissais dos oceanos a deixar de ser Portugal, depois de no dealbar do século XX haver, pelo contrário, preconizado a independência de Cabo Verde, tal como as minúsculas Andorra e Liechtenstein. Se às ruas e às instituições, aos aeroportos e a outros espaços emblemáticos, e, até, aos bairros, despojados de nomes de personalidades e heróis coloniais, foram atribuídos nomes de heróis da luta de libertação (bi)nacional e de outros ícones e heróis africanos e mundiais, como Amílcar Cabral, Francisco Mendes, Jaime Mota, Justino Lopes, Zeca Santos, Ludgero Lima, Domingos Ramos, Titina Silá, Kwame Nkrumah, Ernesto Che Guevara, Eduardo Mondlane, Josina Machel, Agostinho Neto), os bustos e as estátuas coloniais (incluindo de personalidades caboverdianas consideradas pró-coloniais) não foram de todo substituídos, nem sequer por um qualquer ícone em pedra, em metal ou em outro material similar, de Amílcar Cabral, o incontestável, aclamado e genuíno Herói do Povo, proclamado pelo partido único como militante número um do nosso glorioso Partido, porque fundador, mentor, teórico e ideólogo do PAIGC e, mais tarde, no período pós-ruptura do projecto de unidade Guiné-Cabo Verde, do PAICV, e considerado, ademais, o pai-fundador da nossa nacionalidade (no sentido, não da nação caboverdiana, enquanto comunidade etno-cultural e etno-linguística afro-crioula, precocemente gerada e formada ainda na época colonial no bojo e à revelia do longevo colonialismo português, mas de uma comunidade política constituída em Estado livre e independente, consubstanciador, concretizador e prova e ilustração maiores e insofismáveis do exercício do direito à autodeterminação da nossa nação crioula soberana, como efectivamente ocorreu com a República de Cabo Verde, solenemente proclamada a 5 de Julho de 1975, no Estádio da Várzea, da Cidade da Praia.
Assinale-se que na fase final do regime de partido único, alguns bustos e estátuas de ilustres e insignes personalidades e letrados caboverdianos foram repostos nos seus devidos lugares públicos, como foi o caso do poeta José Lopes da Silva, tendo os nomes de outros, de equivalente valia e idêntico reconhecimento por parte das populações das ilhas, sido restituídos às ruas, praças e lugares similares que dantes os ostentavam, como foi o caso paradigmático do Senador Augusto Vera-Cruz.
Tal facto resultou dos esforços político-culturais de reabilitação e revalorização de integrantes de gerações literário-culturais anteriores ao Movimento Político-Cultural da Nova Largada, eclodido nos anos cinquenta do século XX, tendo essas revisitações de reabilitação e revalorização tido o seu auge e o seu momento culminante com a realização do chamado Simpósio Claridade, na cidade do Mindelo, em Novembro do ano (1986) do 50º aniversário da fundação na cidade do Mindelo dessa icónica revista modernista caboverdiana.
Relembre-se, neste contexto, que o Movimento Político-Cultural da Nova Largada foi integrado por individualidades (poetas, romancistas, contistas e ensaístas), então a fazer os estudos universitários em Lisboa e Coimbra, em Portugal, e fortemente contestatárias das personalidades mais célebres das gerações suas antecedentes, salvo algumas poucas de entre elas, como por exemplo, o Eugénio Tavares cultor de mornas e do idioma crioulo, e o Pedro Cardoso intransigente defensor do idioma crioulo e poeta pan-africanista que, por isso mesmo, se auto-designava por Afro.
De entre esses intelectuais e escritores da geração de cinquenta e princípios de sessenta contestatários das gerações precedentes, com especial realce para a geração nativista, romântica e neo-clássica, isto é, daquela antecedente do modernismo caboverdiano de feição claridosa, sejam referidos e destacados alguns dos seus mais proeminentes émulos, tais Amílcar Cabral, Manuel Duarte, Aguinaldo Fonseca, Ovídio Martins, Timóteo Tio Tiofe, situando-se Gabriel Mariano numa linha nova-largadista de matriz neo-claridosa, idêntica à de Henrique Teixeira de Sousa e de um certo Amílcar Cabral, muito tributária de profundas convicções de teor telúrico modernista e, por isso, muito receptiva da arte literária da geração claridosa e assaz conciliatória com o seu pensamento antropológico-cultural, mesmo quando pugnando acerbamente pela reafricanização dos espíritos e dessa démarche cultural-identitária tirando todas as consequências políticas emancipatórias para o povo das ilhas, como no caso de Amílcar Cabral, neste caso também muito próximo de Manuel Duarte, na classificação da identidade crioula islenha e do destino político caboverdiano como um caso de regionalismo africano.
Curiosamente, a geração claridosa parece ter sido aquela que, mediante a obra sua, por si mesma inventada, de avassalador modernismo telúrico e a sistemática ocultação da herança e da obra das gerações ultrarromânticas e neo-clássicas que a precederam, parece ter-se proposto, em especial na sua fase de afirmação e consolidação geracionais, fazer cair no esquecimento e, quiçá, enterrar definitivamente essas mesmas gerações, mesmo se mantendo laços familiares e de convivial afecto com eminentes representantes dessas gerações, consideradas inapelavelmente ultrapassadas por alegada e notória desfasagem da realidade caboverdiana e das linguagens mais adequadas para a explicação e a dissecação literária dessa mesma realidade.
Para a reavaliação histórica, a reabilitação cívico-política e a revitalização cultural-literária de grandes figuras públicas das gerações caboverdianas passadas, muito contribuíram os trabalhos de articulistas e ensaístas, como Félix Monteiro, com a publicação na revista cultural praiense Raízes das “Páginas Esquecidas” de grandes poetas e prosadores pretéritos, como Guilherme da Cunha Dantas e Eugénio Tavares; Manuel Ferreira com o seu riquíssimo ensaio de introdução à edição fac-similada da revista Claridade; Arnaldo França com estudos sobre Guilherme da Cunha Dantas e, finalmente, Francisco Lopes da Silva, um antigo membro da Geração da Nova Largada e colaborador do Suplemento Cultural, que no jornal mindelense Opinião divulga a vida e a obra de grandes intelectuais e políticos islenhos, como o poeta José Lopes da Silva e o Senador Vera-Cruz, entre muitos outros letrados e vultos nossos, a que se vêm juntar, já nos anos noventa do século XX, a publicação por Manuel Ferreira, do romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida, das Obras (quase) Completas, nos domínios da poesia (em crioulo e em português), da prosa e do teatro, de Eugénio Tavares, com organização de Félix Monteiro, das Poesias de Guilherme Dantas, e das Poesias, de Januário Leite, ambas organizadas por Arnaldo França, do volume Montes Nevados, de Guilherme Ernesto (pseudónimo de Félix Lopes da Silva), com prefácio de Baltasar Lopes da Silva, a que se vem agregar a monumental A Imprensa em Cabo Verde (1820-1975), de João Manuel Nobre de Oliveira, e que, no fundo, representa uma história assaz detalhada e informada das elites letradas caboverdianas e dos seus numerosos e, muitas vezes, até então, desconhecidos representantes.
Após as mudanças políticas resultantes da nova correlação de forças político-partidárias saída das eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991, aliás, alta e surpreendentemente assimétrica, assistiu-se a mudanças abruptas da iconografia oficial da República na pátria do meio do mar, tendo sido combatidos e, até, vilipendiados os considerados símbolos do regime de partido único, incluindo a bandeira e o hino nacionais vindos da independência nacional. Foram retomados e repostos os nomes dos heróis e de figuras históricas portuguesas da época colonial, incluindo os nomes dos considerados descobridores oficiais das ilhas de Cabo Verde, os navegadores portugueses Diogo Gomes e Diogo Afonso, e outros nomes mais controversos, como os chamados Heróis de Mucaba, ligados aos acontecimentos conexos com as atrocidades cometidas em Angola, em 1961, na guerra colonial/na luta de libertação nacional.
Curiosamente, permaneceram intocáveis os nomes de alguns heróis e ícones africanos, sobretudo os oriundos dos países africanos de língua oficial portuguesa, como Eduardo Mondlane, Agostinho Neto, Domingos Ramos, Francisco Mendes, Titina Silá, Josina Machel, tendo outros tido pior fortuna, como, por exemplo, Kwame Nkrumah, e, até, o icónico e, até então, intocável Amílcar Cabral, cujo dia de aniversário do nascimento foi retirado do nome da Praça Central da cidade-capital de Cabo Verde e do calendário de feriados nacionais, permanecendo porém o seu nome na denominação da principal artéria do Platô da Praia (continuando, pois, a antigamente designada Rua Sá da Bandeira a chamar-se Avenida Amílcar Cabral), e no principal (outrora único) Aeroporto Internacional do País, localizado na ilha do Sal.
Por outro lado, o nome de Kwame Nkrumah foi retirado da denominação oficial do célebre bairro capitalino, popular e simplesmente conhecido por Bairro por, durante muito tempo e além da Riba Praia (agora mais conhecida por Platô), ter sido o único bairro da capital caboverdiana verdadeiramente estruturado e organizado, de um ponto de vista urbanístico, tendo-se-lhe reposto o antigo nome do General Craveiro Lopes (ex-Presidente da República Portuguesa durante a ditadura salazarista, mas também por alguns historiadores e cronistas considerado próximo e/ou simpatizante de círculos da oposição democrática portuguesa, por isso mesmo, não reconduzido no cargo de Chefe de Estado de Portugal pelo Ditador de Santa Comba Dão, e quem, aquando da sua visita oficial a Cabo Verde na década de cinquenta do século XX, e após reiteradas petições de proeminentes figuras praienses, teve a iniciativa e a ousadia da construção do mesmo Bairro, assim como do Liceu da Praia).
Como é sabido, o Liceu da Praia foi baptizado, dois anos depois da sua inauguração e abertura solene, com o nome de Adriano Moreira, jovem Ministro do Ultramar do Governo de Salazar, então em festiva, festejada, celebrada e muito rememorada visita a Cabo Verde, visita essa todavia também fortemente causticada, nas suas motivações e nos seus objectivos de alegado “reformismo colonial”, no panfleto político intitulado “Cabo Verde e a Revolução Africana” e clandestinamente assinado por A. Punói (pseudónimo de Manuel Duarte, como se viu já, um importante intelectual e um proeminente membro e mentor da Geração da Nova Largada, então a mais novíssima e a mais politicamente activa de Cabo Verde).
No arquipélago caboverdiano, onde visitou todas as ilhas, incluindo a deserta ilha de Santa Luzia, e astuciosamente munido (municiado, seria a palavra mais exacta) com a periodicamente acenada promessa do estatuto de adjacência político-cultural e administrativa das ilhas de Cabo Verde à Metrópole portuguesa, aliás, desde sempre almejado por franjas importantes das elites caboverdianas, sobretudo as de feição nativista (que a conjugavam com a reivindicação da autonomia política fundada na singularidade crioula da identidade cultural caboverdiana) e de matiz claridosa e barlaventista, mas agora acolhido sob forte reserva, se não rejeição, por alegadamente tardia, pela voz do Engenheiro Humberto Duarte Fonseca, o Ministro do Ultramar português Adriano Moreira procedeu a várias inaugurações de obras de certo vulto e algum esplendor provinciano, encetou algumas notadas mudanças na imprensa local (como, por exemplo, a criação do depois (quase) unanimemente considerado famigerado semanário Arquipélago, firmemente posicionado no arqui-situacionismo colonial-fascista do Estado Novo português, de certo modo ilustrado numa célebre frase da sua autoria ostentada no cabeçalho do jornal (Estas terras de Cabo Verde parecem ter estado adormecidas, no meio do mar, desde a noite dos tempos, à espera de poderem ser Portugal), e coexistente, durante dois anos, com a célebre e invejavelmente produtiva revista oficialmente intitulada Cabo Verde-Boletim de Informação e Propaganda e popularmente conhecida como Boletim Cabo Verde, até à sua morte, em 1964, nos seus eclécticos, estudados e ilustrados trajes finais, manuseados pelo seu Director Bento Levy, tal como também inicialmente o jornal Arquipélago, e ocultados sob uma patenteada máscara oficiosa de Revista de Cultura e Documentação.
Depois da independência política de Cabo Verde a denominação oficial do Liceu da Praia (Liceu Nacional Adriano Moreira) foi substituída por uma outra denominação mais condizente com os fervorosos tempos revolucionários que então se viviam e muito marcados pela adesão dos jovens independentistas aos míticos princípios da unidade Guiné-Cabo Verde e da unidade e da revolução africanas. É esse contexto que explica a escolha do nome de Domingos Ramos, um mítico guerrilheiro tombado em combate na guerra de libertação (bi)nacional da Guiné-Bissau e rodeado de uma aura mítica e heróica, por na hora da sua morte, ter alegadamente escrito com o próprio sangue uma missiva de despedida a Amílcar Cabral, incentivando os combatentes à continuação da luta heróica contra o obsoleto e obscurantista colonialismo português, mesmo que com o sacrifício máximo da própria vida. Tal missiva viria a ganhar foros de canção a um tempo épica e elegíaca por ter sido musicada, interpretada e popularizada pelo então muito conhecido conjunto musical Zeca Santos, do ramo caboverdiano das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo). Segundo conta Aristides Pereira, na entrevista autobiográfica que concedeu ao jornalista caboverdiano José Vicente Lopes, Domingos Ramos aderiu à luta político-militar de libertação (bi)nacional, logo nos seus inícios, fortemente motivado e chocado com o brutal massacre de cerca de cinquenta estivadores e trabalhadores do Porto de Bissau, em greve por melhores salários, massacre esse a que assistiu por na altura integrar as Forças Armadas portuguesas de ocupação colonial e que viria a ser mundialmente conhecido como Massacre de Pidjiguiti para assinalar o Dia da Solidariedade com o Povo da Guiné-Bissau em Luta. Ademais, essa dolorosa efeméride é de suma importância política e de grande relevância histórica por ter levado o PAIGC, fundado a 19 de Setembro de 1956, a decidir passar a uma nova fase, a político-armada, da luta pela independência da Guiné e de Cabo Verde. Ainda segundo afirma Aristides Pereira no testemunho acima referido, Domingos Ramos era nessa altura o mais instruído dos jovens combatentes guineenses, tendo sido o mais destacado formando dos primeiros instruendos enviados à China Popular para formação político-militar e que viriam a dar início à guerra de libertação nacional da Guiné-Bissau.
Depois de lhe ter sido atribuído, debaixo de fortes controvérsias, o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Mindelo, por iniciativa de Onésimo Silveira, de cujo livro A Democracia em Cabo Verde, aliás, foi o apresentador em Lisboa, tem actualmente circulado nas redes sociais uma petição pugnando pela reposição do nome de Adriano Moreira na denominação oficial do Liceu do Platô da Praia (existe actualmente um sem número de Liceus e de Escolas Secundárias na Cidade da Praia, estando assim quebrado o antigo monopólio do único Liceu então existente na cidade-capital, na ilha de Santiago e no Sotavento caboverdiano, fundado cem anos depois do primeiro e efémero Liceu Nacional da Praia e 43 anos depois do Liceu do Mindelo, de que o actual Liceu da Praia começou por ser, em 1958, uma mera e subalterna Secção Liceal).
O facto de o Professor Adriano Moreira ser ainda um homem vivo e cívica e academicamente activo, ademais suficientemente lúcido, se bem que já bastante marcado pelo inexorável peso da idade (vai completar 98 anos), e ainda consubstanciar e representar um exemplar sobrevivente das vicissitudes e das atribulações dos vários tempos históricos portugueses, a que soube, aliás, sempre adaptar-se, compreendendo-os na sua essência e no seu sentido mais profundo como tangíveis produtos das criaturas humanas, indomáveis no seu movimento na eternidade da sua intrínseca condição de seres humanos inseridos nas suas circunstâncias históricas.
Isso tudo, a par do controverso papel que lhe vem sendo atribuído na reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal, e alegadamente comprovado na sua assinatura aposta no diploma legal que determina essa mesma macabra reabertura do famigerado presídio político, doravante destinado ao encarceramento de nacionalistas africanos, depois de já ter sido colónia penal e campo de morte lenta de antifascistas portugueses de estirpes político-ideológicas várias (comunista, republicana, socialista, anarco-sindicalista), além de prisão política para atemorizar e, se possível, definitivamente calar ousados e destemidos comerciantes caboverdianos preocupados com as mortandades pelas fomes, provocadas pela estiagens e pela notória e criminosa incúria da autoridades coloniais e a correlativa denúncia na praça pública, à moda antiga dos nativistas, e a consequente mobilização de socorros no estrangeiro amigo, primacialmente entre os emigrantes caboverdianos radicados nos Estados Unidos da América, para obviar em tempo útil a esse mais que previsível desfecho trágico), em paralelo com a sua componente de campo de trabalho para presos de delito comum, nesses atribulados e clandestinos tempos do recrudescer do nacionalismo africano nas colónias portuguesas e do início de uma nova fase, a político-armada, na luta dos povos secularmente dominados e explorados para eliminar, para todo o sempre da História, a opressão estrangeira e o jugo colonial português, parecem constituir um inultrapassável óbice aos estranhos e extemporâneos desígnios e desideratos desses declarados admiradores e amigos do muito respeitado Professor Adriano Moreira.
Admiradores e amigos certamente também, e quiçá sobretudo, saudosistas dos seus áureos e sempre inesquecíveis tempos liceais, e de uma sua identificação com um nome singular, único e infungível, sentimento esse todavia certamente fungível porque também habita, com toda a certeza, aqueles que, já depois da independência nacional de Cabo Verde e na milagrosa senda da catarse cultural e das mudanças de mentalidades ocorridas com a Revolução dos Cravos do 25 de Abril de 1974, frequentaram o então Liceu Domingos Ramos e aí edificaram os alicerces das suas rememorações e projectaram as suas saudades do futuro.
De todo o modo, parecem ter sido antigos alunos do Liceu Adriano Moreira (incluindo da sua Secção Preparatória da Vila da Assomada de Santa Catarina) a propor e a conseguir a alteração do nome do mais icónico liceu de todo o Cabo Verde para Liceu Domingos Ramos, certamente tirando partido da benfazeja e irreversível mudança dos ventos da História. “Mudam os tempos, mudam-se as vontades”, escreveu Luiz Vaz de Camões que das paredes azulejadas do Liceu da Praia a tudo assistiu, e continua a assistir, absolutamente incólume à eventual fúria iconoclasta dos tempos de mudança por ele tão bem e propiciamente cantados em poesia
Fechado o relativamente longo parêntese sobre as vicissitudes ocorridas com os dois nomes atribuídos ao Bairro e ao Liceu da Praia bem assim com a muito relatada visita de Adriano Moreira a Cabo Verde, em 1962, convinha anotar que, curiosamente, o nome do grande e célebre intelectual e político pan-africanista originário do Gana, retirado, como já se viu, do nome da emblemática localidade suburbana praiense mais conhecida, até aos dias de hoje, simplesmente pelo nome Bairro, permaneceu, todavia, na denominação oficial da equipa de basquetebol do mesmo emblemático subúrbio praiense, múltiplas vezes festejada como campeã regional e nacional de basquetebol.
Heróis caboverdianos da luta (bi)nacional de libertação permaneceram também ilesos a esses tempos revisionistas de radical mudança simbólico-política, tais Jaime Mota, Ludgero Lima, Justino Lopes e algum (quiçá, muito) Amílcar Cabral.
Ícone maior da luta de libertação (bi)nacional dos povos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, orientada pelos princípios da unidade Guiné-Cabo Verde, da unidade africana, da democracia revolucionária e do progresso social para todos os povos do mundo, também respeitado combatente pela liberdade do povo português e pela libertação nacional e pelo progresso social dos povos africanos e dos demais países afro-asiáticos ainda mantidos sob o jugo colonial português, intelectual africano mundialmente reconhecido, teórico de grande envergadura em domínios vários, com destaque para as questões da cultura, dos processos históricos de libertação nacional, do papel do suicídio de classe e das atitudes morais da pequena-burguesia intelectual nesses mesmos processos históricos, respeitado estratega político-militar, humanista ancorado na defesa intransigente dos direitos humanos universais, letrado e cientista (engenheiro agrónomo) empenhado na construção nos nossos países de uma cultura nacional, popular, científica e universal baseada no respeito pela dignidade da pessoa e nas aquisições positivas da civilização universal e da civilização do universal, símbolo da ideia e da incorporação de uma democracia revolucionária verdadeiramente participativa e representativa do povo, enquanto poder do povo, pelo povo e para o povo, não excludente da liberdade de formação de partidos políticos, das liberdades de associação, de manifestação, de greve e de outras liberdades cívicas e democráticas, por isso, susceptível de engendrar e capaz de catalisar mudanças sociais autênticas e profundas no sentido do progresso social e do contínuo desenvolvimento da Humanidade, todavia ferozmente avesso a verborreias ocas e pseudo-revolucionárias rotulagens político-ideológicas, a figura histórica e humana de Amílcar Cabral, sempre presente, amada, estimada e admirada por amplos círculos de caboverdianos das ilhas e diásporas, desde os tempos coloniais de outrora, parecia suscitar fascínio e respeito mesmo entre os seus mais temíveis e indefectíveis adversários políticos e os seus públicos e assumidos inimigos no teatro da guerra colonial/da luta armada de libertação (bi)nacional, para além de eventuais e compreensíveis reservas e repulsas de teor essencialmente e/ou meramente político-ideológico, mas não necessariamente prejudiciais do seu reconhecimento e da sua consagração como eminente personalidade da História Contemporânea do Mundo e como figura maior da História caboverdiana, da História guineense e da História africana. Por isso, em razão da sua grande dimensão humana e da sua enorme envergadura política, aliás, hoje cada vez mais patentes e evidenciadas, foi deliberadamente ignorado como alvo preferencial actual, imediato, directo e predilecto do revanchismo político-ideológico, do revisionismo identitário-cultural e simbólico e da sanha democrático-liberal que assolaram e incandesceram Cabo Verde nos primeiros anos noventa do século XX. Os diferenciados protagonistas dessas mudanças político-sociais preferiram concentrar-se nos adversários políticos efectivamente presentes nos palcos actuais e actuantes da História, alvejando-os e fulminando-os impiedosamente e negando-lhes e retirando-lhes quaisquer veleidades e pretensões de mais-valia histórica, mesmo em contextos outros, anteriores, aliás, muito causticados na sua pertinência e na sua oportunidade políticas.
Simbolicamente enterrados com as devidas, e amiúde ruidosas e carnavalescas, cerimónias fúnebres, por vezes literalmente apedrejados e ferozmente vilipendiados, sendo ademais denunciados em buliçosas campanhas políticas de difamação e destruição de carácter e nos resguardados bastidores dos fabricantes de panfletos anónimos como secretos detentores de colossais contas em divisas estrangeiras em bancos suíços, europeus e americanos, eles que sempre se apresentaram e se representaram na praça pública da república da pátria do meio do mar, como criaturas humanas impolutas e incorruptíveis, de todo o modo, habituadas a um mundo e a um destino de sacrifícios na luta, e, de todo em todo, austeras no seu estilo de vida totalmente dedicada aos fundamentais e inalienáveis interesses do povo das ilhas e diásporas da nossa nação crioula soberana e tão-somente devotadas ao interesse público com vista a assegurar a requerida congregação de vontades nacionais e internacionais para, primeiramente, garantir a salvação dos mais vulneráreis e carenciados filhos do povo das ilhas das garras das fomes e das mortandades e a sua urgente sobrevivência física, espiritual e cultural e, posteriormente, para o paulatino desenvolvimento da pátria caboverdiana e do nosso país afro-insular, os democratas revolucionários vindos transitados do regime de partido único e progressivamente reconvertidos, como também, aliás, os seus antigos opositores internos da extrema-esquerda trotskysta, maoísta e/ou outra similar no seu radicalismo político-ideológico, aos princípios do Estado de Direito Democrático e à democracia pluralista multipartidária, de cuja implantação pacífica e exemplar, consideravam-se, e foram efectivamente, os principais fautores, conjuntamente com a oposição organizada nas diásporas, desde os tempos do regime de partido único, no seio clandestino da UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática, também muito esporadicamente denominada União Cabo-Verdiana para a Independência e a Democracia), fundada na Holanda a 13 de Maio de 1978, e de outros grupos e organizações de natureza política ou humanitária, com destaque para os CCPD (Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia) e a Liga Cabo-Verdiana dos Direitos Humanos, depois abertamente emergente nas ilhas após o anúncio público pelos círculos dirigentes do partido único da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990, e, logo imediatamente depois, assaz disseminada e irruptiva, se não vertiginosamente disruptiva, e protagonizada fundamentalmente pelo MpD (Movimento para a Democracia, fundado, ou, melhor dito, tornado público a 14 de Março de 1990, mediante a publicitação e a disponibilização para assinatura pública da sua Declaração Política, tendo, a final, atingido a cifra de seiscentos subscritores, considerados os seus membros-fundadores), num processo de transição política, denominada, em especial pela politóloga Roselma Évora, de transição por transtituição.
Não obstante tais pergaminhos políticos de verdadeiros patriotas e de genuínos e convictos democratas, predispostos a seguir e a acatar todas as regras do jogo democrático e a aceitar (como de facto vieram a aceitar) todos e quaisquer resultados eleitorais, incluindo os eventualmente conducentes a uma alternância do/no poder político, os fautores da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 e, em razão desta muito relevante efeméride histórica, iniciadores, no dealbar dos anos noventa do século XX, da pluripartidarização e da democratização política plena da sociedade caboverdiana, não mereceram quaisquer condescendências por parte dos seus novos, empenhados e impenitentes adversários políticos, democraticamente alcandorados ao poder a 13 de Janeiro de 1991, e, ainda por cima, com uma inesperada e, a todos os títulos, surpreendente maioria qualificada.
Por outro lado, assiste-se a algo de assaz inesperado e inusitado, na segunda metade dos anos noventa do século XX, eram Mário Fonseca o duradouro Presidente do Instituto Nacional da Cultura (INAC), Úlpio Napoleão Fernandes Ministro da Defesa com a tutela da Cultura e, logo depois, António Jorge Delgado Ministro da Cultura: esvaziada, despojada, destituída e persistentemente vazia de estátuas desde os primeiros anos da independência nacional, como ironicamente assinalado no poema de Arménio Vieira, a que anteriormente se aludiu, Cabo Verde vê-se de repente inundada de estatuária alusiva ao mais icónico, e, quiçá, politicamente controverso e desafiante de todos os nossos Mortos Imortais, Amílcar Cabral.
Com efeito, para além da estátua de corpo inteiro do mais carismático dos Heróis Nacionais das ilhas e diásporas, da autoria do escultor Domingos Luísa, colocada defronte da entrada principal do Aeroporto Internacional do Sal, na altura o único do país e desde a independência de Cabo Verde baptizado com o nome do ícone político maior do nacionalismo africano dos povos da Guiné e de Cabo Verde, assiste-se à inauguração na capital do país do Memorial Amílcar Cabral e de uma estátua de grande dimensão da mesma incontornável e inconfundível figura histórica, oferecida pela República Popular da China e da autoria de um escultor chinês. A acrescer, inaugura-se um busto do Engenheiro Agrónomo que se tornou Líder da luta para a independência das suas duas pátrias, a Guiné e Cabo Verde, e por ela sacrificou a sua vida, na então Vila da Assomada, sede do concelho de Santa Catarina, considerado uma das terras dilectas de Amílcar Cabral e terra natal do seu pai, Juvenal Cabral. O mesmo busto foi inaugurado simultaneamente com um busto do missionário suíço, o padre Louis Allaz, que muito marcou as mesmas gentes de Santa Catarina e do interior da ilha de Santiago em razão da sua lendária e colossal força física e por mor dos seus assíduos posicionamentos contra os abusos e as arbitrariedades das autoridades coloniais portuguesas nas zonas de exercício do seu múnus pastoral e da sua jurisdição espiritual. Anote-se neste contexto que ao Liceu de Santa Catarina, o maior de Cabo Verde, foi também atribuído, por essa mesma altura, o nome de Amílcar Cabral.
Totalmente intocado na sua sacralidade permaneceu o monte mais alto da ilha de Santiago enquanto loca e refúgio dos pétreos perfis do Adão e da Eva do Pik´ Ntoni, que, do ponto mais cimeiro e de mais difícil acesso da mais importante e célebre serra do interior de Santiago, observam, quiçá, desde há milénios, as paisagens circundantes do planalto, depois denominado sucessivamente Mato Engenho, Nhagar e Assomada, dos vales e montanhas dos Picos (São Salvador do Mundo) e de Santa Cruz, da ilha toda de Santiago e das vizinhas planuras arenosas do Maio e da ardente e declivosa altivez do Vulcão do Fogo.
E a história conta-se assim, da seguinte maneira: o Pik´Ntoni, Pik´Intoni, Piki´Ntoni, Piku Ntoni (literalmente, Pico do António) parece ter recebido o seu nome de António da Noli, navegador genovês ao serviço do Rei de Portugal, e a quem é oficialmente atribuída, em regra conjuntamente com o navegador português Diogo Gomes, o achamento, a 1 de Maio de 1460, das primeiras ilhas descobertas de Cabo Verde, designadamente de Santiago, do Fogo, do Maio, da Boavista e do Sal, sendo o descobrimento das demais ilhas de Barlavento e da ilha Brava atribuído ao navegador português Diogo Afonso. Tendo sido durante largos anos o primeiro Capitão-Donatário da ilha de Santiago, esta mesma ilha passou a ser conhecida como a Ilha de António. Mais tarde, e querendo certamente ocultar o relevante papel desempenhado por António da Noli, não só no descobrimento, como também no povoamento da grande ilha meso-atlântica, com senhores brancos reinóis, genoveses e de outra origem europeia e os negros escravizados, capturados e trazidos da Costa de África vizinha, as autoridades coloniais portuguesas passaram a denominar o monte mais alto da mesma ilha estranhamente no feminino, passando o mesmo a chamar-se oficialmente Pico de Antónia (denominação no feminino que, até, se encontra mencionada em crioulo pelo menos uma vez no livro Noti, supondo-se legitimamente que se trata de uma notória gralha ou correcção por quem, no papel de editor, quis conformar-se com a nomenclatura oficial então vigente), sem que ninguém, até agora (pelo menos que seja do nosso conhecimento) pudesse saber deslindar a identidade dessa tal Antónia. Tendo sido, de outros modos, rasurado da nomenclatura, da estatuária e da demais iconografia de Cabo Verde aquando das Comemorações Oficiais do Meio-Milénio do Achamento de Cabo Verde e da erecção das duas estátuas alusivas à mesma transcendente efeméride, designadamente de Diogo Gomes, na cidade da Praia, e de Diogo Afonso, na cidade do Mindelo (efeméride essa que, relembre-se, foi imortalizada no poema “Prelúdio”, de Jorge Barbosa, o qual se refere tão-somente ao descobridor, sem se arriscar a evocar ou/e a invocar nomes concretos), António da Noli ficou assim isento de eventuais represálias e reabilitações político-simbólicas por parte dos muitos protagonistas das várias mudanças político-sociais ocorridas no período pós-colonial no arquipélago caboverdiano. É hoje todavia patente e cada vez mais crescente a tendência para o regresso ao nome verdadeiro Pico de António, tal como sagazmente consignado, registado e perenizado em língua caboverdiana, isto é, Piku Ntoni.
Anote-se que também não se tem notícia de alguma vez terem sido objecto de represálias e reabilitações simbólicas de teor religioso e/ou político-ideológico quer o inusitado nome do lugar seco que foi e é Cabo Verde (do Cabo Verde, na actual cidade de Dakar, capital do Senegal), quer os nomes santificados da maior parte das nossas ilhas, bem como dos concelhos e das freguesias do país.
A questão do apeamento de bustos e estátuas ganhou inédito alento e nova e inusitada actualidade, agora, nestes tempos de célere propagação da pandemia do novo coronavírus (sars-cov-2) e da covid-19, depois do bárbaro e vil assassinato por asfixia do afro-americano George Floyd por um polícia branco, e imbuiu-se de forte e rebelde exacerbação político-contestatária no plano simbólico-identitário sob o lema Black Lives matter (Vidas Negras Importam) por parte de um movimento global de retirada do espaço público não museológico de figuras e personalidades históricas, primacialmente brancas, conotadas com o tráfico negreiro, o esclavagismo e os métodos coloniais mais cruéis, bárbaros e desumanos de subjugação do ser humano, em especial das criaturas humanas africanas. Em Cabo Verde, vem circulando uma petição pública, iniciada por um caboverdiano radicado na Bélgica, com vista a agendar na Assembleia Nacional a discussão para efeitos de uma eventual decisão institucional de retirada do espaço público caboverdiano de várias figuras coloniais e personalidades históricas portuguesas acusadas de terem sido “pró-esclavagistas” e “pró-colonialistas”, sendo expressamente nomeados os nomes dos descobridores oficiais de Cabo Verde Diogo Gomes e Diogo Afonso, do grande mercador e único Prefeito (Governador) de Cabo Verde, Manuel António Martins, dos governadores Alexandre Albuquerque e Alexandre Serpa Pinto, sendo comum a todas essas personalidades históricas a sua figuração em estátuas e bustos no período colonial, depois derrubados no imediato pós-independência e repostos, mais tarde, no período pós-mudança de 1991.Curiosamente, argumenta-se com a plena legitimidade da substituição da bandeira da independência, de feição emancipatória pan-africanista inspirada na bandeira da da Etiópia e aparentada com as bandeiras da Guiné-Bissau e de outros países oeste-africanos vizinhos, por uma nova bandeira, mais aparentada com algumas bandeiras das ilhas crioulas irmãs das Antilhas Holandesas, para se fundamentar a necessidade de prementes mudanças na configuração escultórica do espaço público mediante a estatutária nela patente. Geradora de polémica em razão de algumas figuras coloniais directamente visadas terem sido, notória e reconhecidamente, de grande relevância para o progresso da ilhas e das suas populações, como são os casos de Sá da Bandeira, proeminente político liberal que, entre outras coisas importantíssimas, promoveu e decretou a abolição da escravatura em Cabo Verde, Manuel António Martins que iniciou e concretizou com sucesso o povoamento da ilha do Sal, Alexandre Albuquerque, considerado muito importante para a configuração e o arranjo urbanístico do actual Platô (centro histórico) da Cidade da Praia.
Mais complexa parece ser a matéria relativa a Diogo Gomes, o navegador português considerado e incensado, conjuntamente com Diogo Afonso, por ocasião das celebrações oficiais do achamento das ilhas de Cabo Verde, pelo poder colonial-fascista português, como os únicos descobridores oficiais do nosso arquipélago atlântico. Acusado, com provas devidamente insertas em fontes históricas fidedignas, de ter sido co-pioneiro no tráfico europeu de escravos africanos no período inicial da Expansão Marítima Portuguesa, mediante a captura de seres humanos em Arzila e a sua posterior venda na cidade de Lagos, no Algarve (Portugal), muitos historiadores contestam ademais o alegadamente preponderante papel de Diogo Gomes no descobrimento de Cabo Verde (acompanhando ou acompanhado de António da Noli e de outros navegadores portugueses e italianos), não sendo consensuais a esse respeito as fontes históricas, conforme nos elucida de forma assaz exaustiva e convincente o Doutor Victor Barros (in Barros, Victor. “A escrita da história da ‘descoberta’ de Cabo Verde. Fabulário cronográfico, história oficial ou fabricação do consentimento?” Práticas da História, Journal on Theory, Historiography and Uses of the Past, n.º 5 (2017): 75-113).
Interessantes, nesta circunstância, pareceram-me dois textos:
A crónica "As estátuas e a saga identitária do povo das ilhas", de José Maria Neves, publicado na sua página do facebook e pugnando por uma visão global e crítica da História das ilhas, destrinçando porém aquelas figuras históricas que, pela sua obra e pela sua contribuição em cada momento histórico para a defesa e a promoção dos interesses da terra e das gentes das ilhas, merecem ser glorificadas através de estátuas e de outros monumentos.
- A proposta, inserta num post da página de facebook da autoria de (do Doutor Engenheiro) Inácio Pereira, defendendo a ideia de acrescentar estátuas às estátuas já existentes, ou, pelo menos, a uma parte das estátuas já existentes e disponíveis no espaço público caboverdiano, anulando a invisibilidade, induzida ou não, que ainda perpassa as figuras memoráveis da nossa História (com destaque para aquela relativa à grande ilha de Santiago), sobretudo trazendo para o espaço público personalidades caboverdiana relevantes, marcantes nos mais variados domínios de actividade e do saber, e na luta pela emancipação cultural e político-social do povo caboverdiano, nas diferentes e atribuladas etapas e nas diferentes vertentes da sua já longa e rica História.
Nessa figuras históricas, ter-se-ia, óbvia e necessariamente, de se incluir, para além de alguns notáveis, políticos, letrados, intelectuais e homens da cultura, dos tempos de outrora e dos tempos mais recentes, elencados a título meramente exemplificativo por José Maria Neves, os muitos resistentes e revoltosos contra a escravocravia e os muitos rebelados contra a exploração dos camponeses pobres pelos latifundiários, como, por exemplo, os Valentes de Julangue (e os seus respectivos líderes Matias Pereira, Domingos Lopes, entre outros), os revoltosos de Monte-Agarro (com destaque para os líderes arcabuzados Gervásio e Domingos, para além de Narciso, o terceiro líder), Lázaro, o Salteador, os revoltosos do Paúl, em Santo Antão, os protagonistas da revolta da fome, em 1934, na cidade do Mindelo, liderada pelo marceneiro santantonense Ambrósio Lopes (o célebre Capitão Ambrósio do poema homónimo de Gabriel Mariano), os camponeses revoltosos dos Engenhos, da Achada Falcão e de Ribeirão Manuel, etc., etc..
É também num contexto de aceso enfrentamento político-ideológico e de exacerbada confrontação simbólico-identitária, que se assiste igualmente na poesia de Kaká Barboza, constante do livro Son di ViraSon, publicado em 1996, a uma nítida exaltação, eivada de um certo olhar saudosista romântico-revolucionário dos tempos heróicos de outrora (relembre-se, mais uma vez, na feliz expressão do poeta Mário Fonseca) da militância política para a conquista da independência nacional e para a chamada reconstrução nacional do país no quadro autoritário do regime nacional-democrático-revolucionário de partido único: ”Kantu nos tudu éra nos tudu/na palmanhan di nos stréla negru/kantu ómi berdianu kontra ku si konsénsia/na dia livri y na nóti´l si téra/kantu nu kontraba garganta/na kel un gritu kel un batuku/ brasu labantadu na kel un txon/odju plantadu na kel un lus/nos tudu éra nos tudu//Nos tudu éra onbru ku onbru/pasu konpasadu folgu kenti/konfinadu na kel un forsa/ta dizafia sina ku distinu/anu kontra anu ti inda/pa ti oji alá-nu riba- l mundu/ku vós sima tudu vós/konbérsu sima tudu konbérsu/vontadi sima tudu vontadi/speransa kada bês ranobadu/sima tudu kriatura di mundu/ómi sima tudu ómi na si txon pertensedu/ ku nos mosinhus kontinuason di nos vida/baxu sol di nos odju/na palmu mo di nos amor/ta kóre na strada largu rostu pa dianti /ta bai-ta-bai sen medu sónbra runhu/alégri sorizu na fronti/na kurva kontra-kurva di ténpu. (…).
Serve essa exaltação dos tempos heróicos de outrora para, primacialmente, assumir os tangíveis frutos e os virtuosos resultados da obtenção da soberania nacional de Cabo Verde com Julho nosso ourgulho (como escreve majestosa e miraculosamente o poeta Oswaldo Osório, fundindo ouro e orgulho) e da sua entrada de forma digna, porque enquanto país independente e soberano, como membro respeitado e de pleno direito da Comunidade Internacional, como se pode inferir do seguinte trecho: “pa ti oji alá-nu riba- l mundu/ ku vós sima tudu vós/konbérsu sima tudu konbérsu/vontadi sima tudu vontadi/speransa kada bês ranobadu/sima tudu kriatura di mundu/ómi sima tudu ómi na si txon pertensedu”.
Resultados tangíveis e virtuosos frutos que parecem representar a justa e merecida compensação por tudo o que o povo caboverdiano forjou na História e com a História, forjando-se a si próprio no sofrimento, na tenacidade e na temeridade: “Abo berdianu/fidju di azágua sen txuba/fidju kaminhu lonji distinu grandi/fidju di mundu pa sirbi mundu/na sirbintia ku pás na armundadi//Abo berdianu/di rasa djondjodu di fiu a pabíu/tenpradu na kalor di bu txon/ku nó d´un krensa ka di ónti ka di oji/ki diskubridor ka diskubri/sabidu ka disbenda/papiador ka pâpia/ storiador ka storia//Abó berdianu/ómi di tudu ténpu/stendedu na séti banda-l mundu/ku sangi musturadu n´óropa/na merka y kósta baxu prála/kantu rubera kantu kutelu/sta na léguas bu kósta/Má kantu vontadi sta inda/na bu minina d´ódju ta límia”.
Ademais, pretende-se com a exaltação da sua História de coragem, de perseverança e de tenacidade renovar a confiança dos caboverdianos na sua comprovada resiliência face aos desafios passados e na sua capacidade de encetar novos e inéditos caminhos para o futuro: “ Berdianu más un bês labanta bu fé/sukudi spritu bu puxa pa konsénsia/gósi ki é óra di bu óra/ momentu di bu momentu/agó k´é palmanhan di bu amanhan/xinti na bó kriatura di ánu 2000 prála/xinti na bó fé na amanhan di bu amanhan/xinti na bó sertéza na forsa´l bu bida/ki bo própi bu sa ta labra ku soris/na kada noti ki kai/y na kada sol ki manxi (…)”.
Renovada essa confiança, o poeta intenta empreender uma aproximação de feição primacialmente emotivo-ideológica e político-afectiva ao seu interlocutor, o próprio Cabo Verde (ou, por outras palavras, Cabo Verde ele próprio), não sem antes retomar anteriores avisos e alertas: “Má á! Kauberdi… dja N flaba/ma palavra promésa ka di tudu bóka/palavra sentensa ka di tudu konsénsia/pabia mimória di povu fla:/ma rótxa ka runhu pa kriminozu/y kaminhu ka lonji pa kel ki kredu”.
Interpelado na sua História mais anónima e na suas muitas atribulações e deambulações pelo mundo lato e vasto, o poeta parece ter preparado o seu interlocutor, o povo caboverdiano, ou, se se quiser, o caboverdiano anónimo, humilde, meu irmão, como diria Jorge Barbosa, mas dos tempos seus contemporâneos, de intensos combates ideológicos e de lutas políticas sem tréguas, para a recepção da mensagem que, de forma insistente, pretende transmitir, prosseguindo o diálogo doravante iniciando as falas sempre pelo refrão (com pequenas variações): ”si nha konbérsu di sirkunstánsia/buli-bu na bu konsiénsia berdianu”.
O diálogo encetado tem um intuito claro e inequívoco: o estabelecimento de relações virtuosas de confiança político-afectiva, por isso mesmo, despidas de fingimentos, simulações, reservas mentais e outros vícios que desvirtuam as relações em torno do poder, da sua conquista e da sua manutenção: “nton ala-nu djuntu/sen mantxóntxa/sen mintira/sen diskunfiansa/sen medu y sen lixónxa/ djuntadu na kaminhu di lus/di fé y di speransa/brasu ntralasadu/ladu a ladu/FIXI…Má FIXI/armun-armun/na realizason di dizeju-l nos tudu”.
Estabelecidas as relações de confiança mútua, as quais se presumem e se querem fundadas em laços verdadeiramente fraternitários, pode o poeta finalmente dizer o que realmente pretende e almeja, assumindo-se de forma afirmativa e assertiva nas vestes de um profeta plenamente capacitado para anunciar o futuro: “Aian!/ ala-nu oji na dimanda di ténpu nobu/sen raiba/sen maldadi/sen kalúnia/ómi li ómi la/ku razon na pratu-l balansa/ma-ndis-kontu ditadu antigu/se pa tonba un kabritu/anti móre tudu santxu”.
Reiterado o refrão/senha de um diálogo que se deseja baseado no altruísmo da sabedoria que gera a confiança mútua (“Berdianu…Berdianu/si nha konbérsu di sirkunstánsia/buli-bu na bu konsénsia berdianu”), pode o poeta concluir: “nton nu sta djuntu ta púrfia ku distinu/sakedu na dimanda ku ténpu nobu”.
Parece, pois, chegado o momento oportuno do regresso do poeta às fontes mais castiças e fiáveis do saber tradicional que são os provérbios e da autenticação do seu saber de poeta na sabedoria ínsita nessas mesmas fontes: “Nton sukuta bu obi verdadi-l bu povu/s´e pa gatu na saku/anti ratu na braku/s´é pa leti ku mamun/anti txupa limon/s´é pa katxupa salgadu/anti xeren sen kapadu/s´é pa simenti falfadu/anti txuba atrazadu/ (…) sé pa lus npistadu/anti sukuru palpadu/ s´é pa konfesa pa diabu/anti móre ku pekadu”.
Autenticado na sabedoria popular mais castiça e profunda, pode o poeta assumir-se como criatura humana comungando na plenitude do ideário e da idiossincrasia do seu interlocutor predilecto, o povo caboverdiano de todos os tempos presentes e vindouros:” Anpos berdianu di oji, manhan y senpri/si nha konbérsu di sirkunstánsia/buli-bu na bu konsiénsia berdianu/nton nu ta fika y kontinua djuntu/ta púrfia ku distinu/sakédu ÓMI-OMI ta dimanda ku ténpu nobu/N fla pa fika fladu/y pa bale tudu ténpu”.
2.3. Poesia de Paixão Amorosa
Para além das dimensões eminentemente telúricas, político-ideológicas e cultural-identitárias da poesia de Kaká Barboza constante do livro SondiViraSon, cabe, neste momento, tão-somente assinalar que essa poesia tem também uma dimensão de amor e de paixão amorosa, assaz acentuada e ilustrada em vários poemas. Referimo-nos especialmente aos poemas “Badia N”, “Véra Nha Mudje´l”, “Kretxeu”, “Puéma pa Dia X di Anu N”, “Suspiru” e, de certo modo, “Profesóra Rejina o Kodé di Dóia”. Seja, pois, essa poesia de amor e paixão amorosa ilustrada com a seguinte transcrição do poema “Suspiru”, inquestionavelmente de elevada qualidade poética. “Ó flor di pédra dizabroxa/ pétala di lus ilumina/lagoa grandi di nhas ànsia/subi na forsa di nha seiva-suor/ kuluri nhas sonhu sen neblina/labanta n´orizonti nha speransa/ un oróra koroadu di sertéza//Ó briza frésku di tudu kantu/traze n´aza branku di bu korpu/son di virason pa vibra-m n´ alma// Ó bentu fórti di tudu rumu/sopra bu subi na rudumunhu/pa bu tisa vaga di mudansa/ki t´inunda praiadi nha speransa/pa rabenta lagoa di nhas ánsia/sen perde konxénxa di mi/pa N xinti baziu dentu-l mi”.
3. NOTAS FINAIS E CONCLUSIVAS SOBRE UM GRANDE POETA CABOVERDIANO CRIOULÓGRAFO, NA HORA DO SEU PASSAMENTO PARA O ESTATUTO DE MORTO IMORTAL, COM BREVÍSSIMA (ALIÁS, E MELHOR DIZENDO, METEÓRICA) INCURSÃO A KONFISON NA FINATA - O PRIMEIRO POEMA ÉPICO-TELÚRICO EM LÍNGUA CABOVERDIANA, CONSTANTE E INTEGRANTE DO LIVRO HOMÓNIMO COMO A SUA PRIMEIRA PARTE
Conhecedor profundo da oratura caboverdiana, em especial daquela radicada e cultivada na ilha de Santiago, detentor de um grande domínio da imagética, do metaforismo e de outros recursos poéticos da língua caboverdiana, Kaká Barboza atinge níveis estéticos ainda mais elevados no domínio da poesia com o livro Konfison na Finata (Edições Artiletra, 2003), cujo poema homónimo (o primeiro do livro) tem uma intenção épica evidente e assaz conseguida.
Deste modo, logra o autor alargar o campo temático e semântico da poesia da afro-crioulitude, introduzindo várias inovações na variante-matriz badia (santiaguense) da língua caboverdiana, com destaque para a sábia e sabida utilização da métrica e da rima, o uso sistemático do gerúndio num crioulo de feição mesolectal e por vezes acrolectal, sem perder a profunda raiz basilectal, característica da poesia anterior de Kaká Barboza, mormente daquela constante de Vinti Xintidu Letradu na Kriolu.
A orgulhosa assunção da africanidade de Cabo Verde afirma-se mediante a exumação da história colonial-escravocrata bem como da mestiçagem biológica e da miscigenação cultural que dela decorreram e que estão na base da formação do povo caboverdiano e de todas as expressões culturais da sua crioulidade na plenitude da riqueza da sua diversidade.
A reivindicação da africanidade de Cabo Verde caminha, pois, a par da forte exaltação da sua crioulidade e da harmónica e descomplexada assunção de todas as suas matrizes e dimensões na caleidoscópica diversidade dos seus rostos, como se verificava já no primeiro livro, no qual, como vimos, foi publicado o poema “Serenata”, conjuntamente com outros poemas mais virados para as expressões da cultura caboverdiana tradicionalmente tidas por mais caracteristicamente afro-crioulas, e assume proporções metafóricas de grande envergadura no poema “Pa Bibufika Bibinha”, do livro Son di ViraSon, o seu segundo livro de poesia vazada na língua caboverdiana: “ (…) Txoradu Bibinha Raínha/ kantadu méstra txoradu/na séti noti ladainha/séti dia di stêra finkadu//na fin di txoru/vozis rasponde en koru/na séu alma é di séu/na téra korpu é di téra/má na Pensamentu/tumultu/txoru/suparason/ sodadi/ lenbransa/ krénsa/tudu ta fika/tudu ta fika/ta bai ta ben/ta djolonji na ténpu//Si Bibinha korpu bai/alma di méstra fika/bibu na flor di ténpu/na fin-fin di sinboa/na tereru batuku/na mandongu txabéta/na palmu rapikadu/na tornu balansiadu/na kódi kantadu/ na kórneta tabanka/na tanboru SanDjon/na mi menor rakintadu/na palavra kadensiadu/na garganta kantadera/na feru funaná/na txon ta bur-bur/sima nobu mininu fémia/baxu briu di mininu matxu/na tereru livri/livri sen rei nen mondon//Di txon ki toma-l/rananse Bibinha/bibu e labanta/koruadu raínha/bistidu di branku/na pó di komandu/ta subi na ténpu/na forsa d´un krénsa/rixu más ki pó/más ki pédra/ más ki féru/más ki própi mundu (…)” .
Deste modo, Kaká Barboza comprovou-se, foi-se comprovando e comprova-se, agora na hora da sua morte, como um dos mais conseguidos poetas caboverdianos na língua caboverdiana que é o nosso crioulo e nas temáticas poéticas da afro-crioulitude, desempenhando a mestiçagem e a dialéctica síntese e harmonização de contrários um papel fulcral na sua poesia, como se podia verificar já no poema “10 Mustura na Bespa di 11” do caderno “Son di Ravuluçan” do livro Vinti Xintidu Letradu na Kriolu:“ (…) Branku mustura ku pretu/da/Kaoberdianu/Pasadu mustura ku prizenti/da/Nobu (…)”.
Lisboa, 15 de Maio de 2020, dia da aprovação, por unanimidade, pela Assembleia Nacional, o Parlamento Caboverdiano, de um voto de pesar pelo falecimento de Felisberto Vieira Lopes (poeta e advogado) e de Carlos Alberto Lopes Barbosa, mais conhecido por Kaká Barboza (poeta, escritor, músico e ex-deputado nacional).
Lisboa, 25 de Maio de 2020, data da Celebração do Dia de África, do vil assassinato de George Floyd e da primeira revisão do presente texto, desde sempre intitulado A Imortalidade em Tempos de Pandemia - Apontamentos de um Confinado por mor da vigente Situação de Calamidade Pública Sanitária e organizado em vária partes, denominadas Anotações, por sua vez eventualmente estruturadas em vários capítulos designados Secções.
Lisboa, 10 de Junho de 2020, Dia de Camões e data de aprofundada revisão do presente texto, em especial das “Sextas Anotações sobre o Bilinguismo Caboverdiano” e das “Anotações Extraordinárias sobre George Floyd”.
Lisboa, 3 de Agosto de 2020, Dia do 61º Aniversário do Massacre de Pidjiguiti e data de mais uma revisão, com acrescentamentos, designadamente das referências ao Comandante Honório Chantre Fortes, por ocasião da sua morte, na Secção Primeira das Oitavas Anotações do presente texto.
Lisboa, 16, 17 e madrugada de 18 de Agosto de 2020, datas da penúltima revisão desta Terceira Secção destas Oitavas e Derradeiras Anotações.
Lisboa, 19 e 24 de Agosto de 2020, datas da última revisão, com alguns acrescentamentos relativos à actual polémica sobre as estátuas, desta Terceira Secção destas Oitavas e Derradeiras Anotações, incidentes sobre a poesia em língua caboverdiana de Kaká Barboza (nominho, pseudónimo literário e nome artístico de Carlos Alberto Lopes Barbosa).