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Por: Francisco Carvalho

 francisco carvalho

Persiste na sociedade caboverdeana uma tendência para a negação da importância de se olhar para os problemas sociais como factos irremediavelmente interligados. Enquanto se assiste à elevação de narrativas, umas ingenuamente honestas, outras deliberadamente manipuladoras, de olhar para os problemas um de cada vez, dando corpo a uma separação meramente fictícia e interesseira. Este artigo é também sobre essa inegável interligação social.

final

1. Maria Varela, chamemos-lhe assim para preservar a sua identidade, disse que a sua vida é cheia de datas importantes, mas havia três que, pelas suas enormes cargas emocionais, ela considerava como as mais marcantes da vida dela. Uma foi quando disse sim ao Beto, amor da sua vida, começa por explicar, e uma outra, foi o dia em que recebeu das mãos do governo as chaves do seu apartamento no conjunto Casa para Todos, na localidade de São Pedro. Este dia em que tocou nessas chaves ganhou o direito de ficar para sempre ao lado de mais duas outras datas. São os aniversários da mãe e da filha Bia. Ela diz que há anos que apagou da sua memória a data de início do namoro com o Beto, pois passou a ser mãe solteira para sempre. Só que o abandono do Beto atira a Maria para as estatísticas das 40%[i] de crianças que crescem só com a mãe, sem a presença e quase nenhuma colaboração do pai. Uma primeira barreira para a Maria no seu caminho do sonho de ter casa;

2. Nos seus 28 anos de vida, Maria Varela, nunca teve um mês de trabalho fixo, não sabe o significado da palavra “contrato laboral”, e a única coisa que tem de um banco comercial é uma velha e um pouco carcomida caderneta bancária de uma conta aberta há dez anos, na altura em que o irmão lhe enviou 100 euros para enfrentar a mudança, em êxodo rural, de Picos para a Praia. Foi assim que Maria contribuiu para o aumento da população da Praia que cresce cerca de 19% nos primeiros dez anos deste século XXI, passando de 106.348 habitantes em 2000[ii], para 131.719 residentes, em 2010[iii] e 170.236 habitantes nas projeções para 2030[iv]. Sem um contrato de trabalho, Maria entra nas estatísticas de 62.5%[v] de mulheres que engrossam o setor informal em Cabo Verde, quase a totalidade em regime de autoemprego (88.9%), com um rendimento mensal 29.5%[vi] a menos que os homens que também atuam no setor. São, de uma assentada, mais duas barreiras terríveis para a Maria nesse caminho do sonho de ter casa: não tem contrato para pedir um crédito e não tem rendimento a ponto de ter suficiente dinheiro nas mãos para investir numa casa;

3. Maria Varela, chamemos-lhe assim, relembra o rosário de sofrimentos atravessado na sua vida, a vergonha que sentia com os atrasos da renda de cinco mil escudos mensais, paga para apenas um quarto, sala de visita de dia, quarto de dormir à noite e cozinha durante o tempo inteiro. Casa de banho era comum com mais seis “rendeiros”. Envergonhada, confessa as vezes que teve de se aliviar pelo caminho, com o receio de chegar em casa e encontrar a casa de banho ocupada e uma fila de reservas impossível de aguentar. Desde que chegou à Praia, todos os dias teve de sair de casa para ganhar o sustento para o próprio dia. É esta a quarta barreira nesse caminho do sonho de ter casa: esta vida que não permite poupanças;

4. Por isso, confessa a dor que sente na alma cada vez que houve alguém a deitar abaixo o sonho que foi o projeto Casa Para Todos. “Dá-me uma revolta, ta dan um nervu des, ki nhu ka sabi”, atira, enquanto semicerra os olhos e franze os lábios com uma firmeza que provoca um arrepio na espinha. “Inda pur sima es pasa um mandatu interu ku portas tudu fitxadu! És ka tem kurason! És é runhu. Só quem nunca passou por nenhuma dificuldade na vida, nasceu num berço de ouro, pode desprezar o Casa Para Todos”, remata, levantando os olhos em direção à janela;

5. Enquanto isso, vai surgindo, aqui e ali, um discurso de que o problema de acesso à habitação na cidade da Praia pode ser resolvido apenas e somente com base na “lei e na ordem”, recorrendo-se ao chicote e ao castigo para os coitados. Sabia que é a própria lei que é cirurgicamente esquecida quando se trata da violação com as construções dentro da orla marítima? À beira mar, a violação da lei já é desenvolvimento, justificam os hipócritas. Por isso, a cerca de três meses das eleições autárquicas, o máximo que a Câmara Municipal da Praia consegue fazer é oferecer promessas requentadas de lotes e apresentar mais umas maquetas de acesso à habitação apenas para ludibriar os praienses, confessando a incompetência e total insensibilidade dos últimos três mandatos para criar políticas públicas de habitação à medida da vida e da realidade dos indicadores estatísticos. Só com políticas de habitação seria possível contemplar perfis como este da Maria Varela: agregado familiar monoparental com fraco rendimento mensal; sem contrato de trabalho; sem poupanças, nem capacidade de acesso a crédito bancário. Assim, é fácil imaginar o quanto a decisão da Câmara Municipal da Praia, em acabar com a distribuição de terrenos por aforramento, uma das primeiras medidas tomadas por Ulisses Correia e Silva em 2008 quando ganhou as eleições autárquicas na capital – sem, no entanto, criar nenhuma alternativa – terá contribuído para a situação explosiva a que esta cidade chegou hoje.

[i] Folheto Dia Internacional da Criança, 2019, INE

[ii] Censos 2000, INE

[iii] Censos 2010, INE

[iv] Projeções Demográficas de Cabo Verde, 2010-2030, INE

[v] Inquérito Multiobjectivo Contínuo 2015, Módulo Setor Informal, INE

[vi] Lopes da Silva, Damaris, O Sector informal em Cabo Verde: construindo o perfil da atividade, uma abordagem de género, 2017

Comentários  

+1 # Atento sen djobi pa 14-06-2020 23:12
Como sempre um artigo a nivel! Continua meu caro!
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+2 # teofillo soares 14-06-2020 09:41
Diria que este é um drama real, vivenciado hoje por milhares de familias, dos desfavorecidos, dos marginalizados e que só ganham importancia na hora de votar. Mesmo nessa hora solene de darem o seu voto, o único momento em que têm o poder nas mãos, barateam-no, por causa da miséria a que foram votados e se alegram com o pouco e efémero que se repete de 4 ou de 5 em 5 anos. O problema é sério e estamos perante um sector onde a corrupção se instalou e estabeleceu raizes bem profundas, tão profundas que os sucessivos poderes autarquicos, independentemente do partido a que pertencem, acabam sempre entrelaçados na sua teia. As inspeções não levam a nada, porque os inspectores quando são de mãos limpas não desafiam os poderes instalados, porque a nossa sociedade é pequena e temos ainda um país fragil, onde o poder do capital consegue vitorias até no sistema judicial; onde o inteligente e intelectual pode facilmente ser conotado com delirante e demente. Há muito a contar nesta historia de habitação social, construções clandistinas, casa para todos e por ai fora. casa para todos foi uma miragem - parece aqueles programas de luta contra a pobreza que são aproveitados por alguns eleitos para se promoverem ao grupo dos pequenos ricos e manter a grande massa na pobreza. maior parte das pessoas que beneficiaram do programa, não é da classe dos mais desfavorecidos. Mas como já comentei algures, se o programa de seu financiamento e como foi executado pode ser contestado, maior ainda é o erro de manter as casas construidas, sem ser utilizadas, com pessoas vivendo nas barracas e o pais a acumular juros dos milhões da divida cuja bonificação saiu mais caro à economia nacional pelas facilidades concedidas. Pois é, meu caro Francisco, esta é a hora em que alguns cidadãos do publico alvo vão beneficiar de boa parte das casas religiosamente fechadas durante 4 anos; sim! - agora o periodo é ideal para aparecerem os projectos de atribuição de alguns lotes. Se a Maria varela se envolver na tropa daqueles que vão desfilar nos cortejos das campanhas e gritar vivas, e alinhar-se com a difamação dos outros concorrentes - quem sabe? - poderá ser esta a sua vez de receber uma casa e deixar a situação desgraçada para outras tantas Marias desafortunas. Até quando, havemos de assistir a este filme, que se repete ciclicamente?
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+1 # Colundjul51net@hotm 13-06-2020 12:28
Excelente simplesmente belo. Uma visão muito correcta do dia a dia e dos democratas.
A Vereadora foi Varredora é verdeade. Aos jornas.... um bijou bem grande.....
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+1 # Maria Varela 13-06-2020 06:24
Excelente e deleitosa narrativa. Tão humorada quanto magoada. Espelha-se a realidade e expressa a verdade que, para muitos, os hipócritas, cínicos e traidores contundem os ouvidos. A estória da Maria Varela é igual a estória de tantas outras que, com fome se dormem, com fome e sede se acordam, e levantam-se desesperançadas do que o dia que acaba de alvorecer lhes venha a ser diferente.
Costuma-se dizer no bom crioulo da minha Ribeira, que «Sábi riba’l fedi ta poi Sábi bira más fefi ki propi fedi».
Pois, vendo aquele amargurado e surreal espetáculo perpetrado ao vivo e à cores pela Vereadora (temo se o corretor ortográfico me considerar um dos nossos muitos Prof. Doutores e transformar a palavra “Vereadora” por Varredora) da Câmara Municipal da Praia, Ednalva Cardoso, é de não se acreditar que, na verdade, se viraram bonzinhos lá porque daqui há meia dúzia de meses vêm as eleições, vão surripiar os terrenos, mesmo os do Nana para oferecerem, como quem diz, tapar o sol com a peneira, ou seja, «da fus poi na katxor, nen katxor ka staba la».
Parabéns, Francisco Carvalho. Conta-nos sempre estórias dessas. A sociedade precisa saber, o nosso povo irá gostar e Cabo Verde te agradece.
E a nossa gente já se acostumou com esses miminhos inoportunos, que aceita o pouco que para muitos é muito.
Como se quando eu era criança a minha madrasta me dizia, às vezes, quando ela me pedia um pouco do que era meu: «Da di bo tanbe, e da ka doe, toma ka xinti, kenha ki toma ki ka ten burgónha».
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