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Por: Francisco Carvalho

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1. Entre vários outros, há um facto preocupante na sociedade caboverdeana: nos últimos cinco a 10 anos, estamos a assistir a uma tentativa permanente de manipulação do conceito de “assistencialismo” de modo a desvalorizar esta forma de intervenção do Estado, associando-a à noção de desperdício e inutilidade, para assim justificar a total falta de necessidade de tomada de determinadas medidas de políticas públicas que, na verdade, são simplesmente indispensáveis para a sobrevivência condigna de determinadas pessoas, inseridas nas camadas mais desfavorecidas da sociedade;

Definicao assistencialismo

2. Em primeiro lugar, é preciso que fique claro: só há uma definição – de facto – do que é o assistencialismo, entendido como a “doutrina ou prática política que defende a assistência aos mais carenciados da sociedade (1), escreve o Dicionário Priberam que também lança o alerta entre parênteses: “por vezes usado em sentido depreciativo, referindo-se a medidas ou promessas demagógicas”. Contudo, em Cabo Verde, nem sequer a situação é de associação do assistencialismo à demagogia. Há um discurso político partidário a defender que o Estado – simplesmente – nunca deve ser assistencialista! Sendo que, para argumentar que o Estado não deve ser assistencialista, tem-se socorrido muito de um ditado que diz: “Não se deve dar o peixe, mas sim deve-se ensinar a pescar”, como forma de se garantir a autonomia da pessoa!

3. Este ditado é deitado por terra por um académico e político português, Alfredo Bruto da Costa, doutorado em sociologia, que em resumo afirma: “Discordo da frase «não dês o peixe, dá a cana»”. E, continua explicando: “Se só deres o peixe, ele só comerá hoje. Se, além do peixe, deres a cana, ele comerá hoje e o resto da vida. Não vale de nada dar uma cana a alguém que está com tanta fome que não pode sequer levantar-se para chegar ao rio para pescar(2). É de maior importância reter que há pessoas carenciadas e que precisam de assistência para saírem da situação de exclusão social e de indignidade humana em que se encontram. Este assistir às pessoas é o assistencialismo que cabe ao Estado assumir. Todavia, se há dirigente público que faz a "instrumentalização dessa assistência", utilizando-o para fins e ganhos particulares, é fundamental que não se utilize essa “ação de instrumentalização” como justificação para desvalorizar e mudar a essência do que é o assistencialismo, que é assistir com honestidade, justiça e humanismo quem comprovadamente precisa! Pelo contrário, a prática de instrumentalização deve ser chamada pelo nome próprio: corrupção, desonestidade, falta de caráter e de ética, etc.

4. Será que Cabo Verde não tem pessoas a viverem em condições desumanas que justificam medidas públicas de assistencialismo? Será democrático que – à partida – o Estado exclua uma certa camada da população nacional da sua esfera de atuação, uma vez que não considera a possibilidade de ter políticas assistencialistas que são as primeiras políticas públicas que essas camadas sociais necessitam?

5. Para se ter respostas honestas a estas questões é imprescindível que se tenha uma noção mínima do estado em que se encontra a sociedade caboverdeana e para isso deve-se prestar a devida atenção a três dados estatísticos fundamentais sobre a (i) a pobreza, o desemprego e a chamada inatividade. Os dados estatísticos do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) demonstram que no ano de 2015 havia 179 mil e 909 caboverdeanos pobres, isto é, que viviam em casas que tinham em média menos de 262$00 para o sustento por dia, para toda a família! Sendo que entre esses pobres havia uns tinham menos ainda: 54 mil 395 tinham menos do que 136$00 por dia para as suas casas – nem sabemos quantas pessoas tinham cada casa! Estas são enquadradas na chamada pobreza extrema!

6. Para o desemprego o cenário é também desolador! Mas, para percebermos bem a realidade do drama dos caboverdeanos que não têm emprego, há uma explicação que é fundamental. A taxa de desemprego do INE (3) não corresponde a todos os caboverdeanos que não estão a trabalhar. Para sabermos quantos caboverdeanos estão de facto – no desemprego – temos de somar os desempregados (27 mil e 28 pessoas) e uma parte dos chamados inativos, entre os quais os que não procuraram trabalho (desanimados), os que estão à espera de respostas ou de retomarem o emprego anterior. É bastante ilustrativo o quanto a noção de inativos contribui para mascarar a realidade do desemprego em Cabo Verde, se considerarmos que entre os inativos só a percentagem dos indivíduos que não procuraram trabalho – porque consideram que “não há qualquer emprego” (4) disponível – é de 16,4%, ou seja, é superior à própria taxa de desemprego (12,2%). Cabo Verde tem mais desanimados do que desempregados!

7. Em síntese, como negar a função assistencialista ao Estado num país com largas franjas de cidadãos pobres (35,1%), desempregados (12,2%), desanimados (16,4%), a passar fome (13%) (5) e 30% de jovens dos 15 aos 34 anos sem trabalho e nem a frequentar a escola ou uma formação? (6) Pior ainda quando se trata do mesmo Estado que, simultaneamente, se assume contra “dar” aos mais carenciados, mas “doa” milhões a empresas privadas sob o disfarce de “avales”, “garantias” – desistências de cobranças nos tribunais – e recebe “assistência internacional” para completar o seu próprio Orçamento de Estado (7) e até em arroz para a alimentação do país! (8)

8. Quando se trata de acudir o “coitado” é condenado porque é assistencialismo, mas quando é para canalizar milhões de contos do Orçamento do Estado para os empresários, muda de nome e passar a ser chamado de incentivo?! Esta é a grande hipocrisia em que se está a transformar o Estado de Cabo Verde, atualmente.Orcamento

(1) https://dicionario.priberam.org/assistencialismo

(2) “Morreu Bruto da Costa, o político para quem se devia dar aos pobres o peixe e a cana”. (Público, 11 nov. 2016) https://www.publico.pt/2016/11/11/sociedade/noticia/morreu-o-antigo-ministro-e-conselheiro-de-estado-alfredo-bruto-da-costa-1750840?fbclid=IwAR3fFGIrS7R9tmsxcxPta1wcCJMh8hN55P2B5GyWq-g9gEhRXK3TrmRPUfY

(3) As fórmulas estatísticas são poderosos instrumentos de dominação. A fórmula de cálculo que o INE utiliza é imposta por centros de decisões dos países mais ricos do mundo.

(4) INE (2019), Estatísticas do Mercado do Trabalho, Inquérito Multiobjectivo Contínuo 2018, pág. 46, http://ine.cv/wp-content/uploads/2019/04/imc_2018_estatisticas_mercado_trabalho_compressed.pdf

(5) “A fome atingiu 13% da população cabo-verdiana em 2018”. (A Nação, 17 jul. 2019) https://anacao.cv/a-fome-atingiu-13-da-populacao-cabo-verdiana-em-2018-onu/

(6) Geração “nem, nem”. (Expresso das Ilhas, 14 abr. 2019) https://expressodasilhas.cv/economia/2019/04/14/geracao-nem-nem/63323

(7) “Cabo Verde precisa de endividar-se em 180 ME para financiar Orçamento de 2020”. (Lusa, 28 out. 2019) https://www.rtp.pt/noticias/economia/cabo-verde-precisa-de-endividar-se-em-180-me-para-financiar-orcamento-de-2020_n1182000

(8) “Cabo Verde recebe assistência alimentar do Japão” (Expresso das Ilhas, 8 out. 2019). https://expressodasilhas.cv/politica/2019/10/08/cabo-verde-recebe-assistencia-alimentar-do-japao/66024?fbclid=IwAR0vrOFg-wjHA5mXhHp7IRchT7nZf--MqcXuBcY97Euvrl-h2HtmjQBBEXQ

Comentários  

+1 # SÓCRATES DE SANTIAGO 20-12-2019 10:54
Concordo plenamente com a brilhante tese sobre o ASSISTENCIALISMO defendida pelo nosso SOCIÓLOGO, DOUTOR FRANCISCO CARVALHO, um intelectual muito sério e dedicado, que nos tem habituado com profundos artigos analíticos sobre temas quentes da actualidade. Discordo inteiramente do Senhor Professor de Português do Ensino Secundário, Pedro Alexandre Rocha, que teimosa e incessantemente só vê as coisas com a lupa do seu partido MPD, característica de quem ainda não percepciona as luzes do conhecimento, UM AUTÊNTICO CADÁVER MENTAL VIVENDO NAS GRETAS OBSCURAS DAS CAVERNAS.
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-3 # John Miller 23-12-2019 10:22
Talvez não saibas o que é uma tese!
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+2 # Francisco A Carvalho 23-12-2019 12:45
Definição de "tese"

te·se

substantivo feminino

1. Proposição que alguém expõe propondo-se discuti-la ou defendê-la.

2. [Figurado] Assunto, tema.

3. Trabalho escrito que um aluno deve elaborar, apresentar e defender perante um júri para a obtenção do grau académico de doutor.

"tese", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/tese [consultado em 23-12-2019].
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-5 # Pedro Alexandre Roch 19-12-2019 11:40
Os defensores do assistencialismo barato Emílio Fernandes e Francisco Carvalho acordam sempre tarde e, por isso, mal se apercebem que o mundo mudou e que o velho comunismo se colapsou juntamente com o seu modelo assistencialista que mantinha as pessoas na dependência dos magnatas do poder e por estes subjugadas e manipuladas.
Hoje, o mundo propõe uma nova versão do exércício do poder que respeita e promove a dignidade do homem pela via da sua libertação e autonomia, sem paternalismo dos que exercem o poder, como no velho comunismo, mas sim com a sua capacidade de intervir e a sua inteligência para imaginar e encontrar soluções que não sejam mendigar aos homens do poder, como pretendem os assistencialistas, com a velha forma de se perpetuarem no poder.
O modelo assistencialista do PAICV, copiado do velho comunismo, esgotou-se com o colapso deste, há 30 anos atrás e hoje o mundo rejeita a hipocrisia daqueles que pretendem perpetuar-se no poder explorando as fragilidades das pessoas, sobretudo em períodos de campanha eleitoral para conseguirem o voto popular.
O povo caboverdiano está a despertar-se todos os dias e começa a perceber a tática manipuladora dos que defendem o assistencialismo discursivo, pois na prática quando foram o poder, recentemente, praticaram a política de direita, quase extremada, com graves consequências para os trabalhadores caboverdianos. A revisão do Código Laboral é um exemplo disto.
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+5 # Rivolta 19-12-2019 18:06
Pedro Alexandre Rocha, comcordo pleanmente com o Francisco Carvalho que o conceito de "assistencialismo barato" não existe numa abordagem séria e responsável da questão do assistencialismo. Não tem quqlquer fundamento.

Meu caro, vivo há 42 anos na Hollanada e se não existisse o assistecialismo estavamos todos perdidos ou viver numa psychose.
O assistencialismo não é so um dever dos partidos ou dos actores politicos mas é algo que está hoje “LAKARADU” na lei. Comunismo uma ôva!
… mais em baixo segue a tradução em portugues.

Art. 8 WML - Artikel 8 Wet minimumloon en minimumvakantiebijslag
Wet van 27 november 1968, houdende regelen inzake een minimumloon en een minimumvakantiebijslag
Wij JULIANA, bij de gratie Gods, Koningin der Nederlanden, Prinses van Oranje-Nassau, enz., enz., enz.
Allen, die deze zullen zien of horen lezen, saluut! doen te weten:
Alzo Wij in overweging genomen hebben, dat het wenselijk is bij de wet regelen te stellen inzake een minimumloon en een minimumvakantiebijslag;
Zo is het, dat Wij, de Raad van State gehoord, en met gemeen overleg der Staten-Generaal, hebben goedgevonden en verstaan, gelijk Wij goedvinden en verstaan bij deze:
1 Het minimumloon bedraagt over elke uitbetalingstermijn van:
a. een maand of een veelvoud van een maand: € 1264,80 [Red: per 1 juli 2019: € 1.635,60] , onderscheidenlijk een gelijk veelvoud hiervan;
b. een week of een veelvoud van een week: € 291,90 [Red: per 1 juli 2019: € 377,45] , onderscheidenlijk een gelijk veelvoud hiervan

Tradução em portugues:
Art. 8 WML - Artigo 8º da Lei do Salário Mínimo e Subsídio Mínimo de Férias
Lei de 27 de novembro de 1968, que regulava o salário mínimo e o subsídio mínimo de férias Válido de 01-07-2019 até o presente
Nós JULIANA, pela graça de Deus, rainha dos Países Baixos, princesa de Orange-Nassau, etc., etc., etc.
Todos os que verão ou ouvirão a leitura, saúdam! sabe:
Assim, consideramos que é desejável estabelecer por lei regras sobre um salário mínimo e um subsídio mínimo de férias;
Assim, nós, tendo ouvido o Conselho de Estado e em consulta com os Estados Gerais, aprovamos e entendemos, como Aprovamos e entendemos:
1 O salário mínimo é superior a cada período de pagamento de:
a) um mês ou múltiplo de um mês: 1264,80 €: de 1 de julho de 2019: 1.635,60 €], ou um múltiplo igual do mesmo;
b. por semana ou múltiplo de uma semana: 291,90 €: por 1 de julho de 2019: 377,45 €], ou um múltiplo igual do mesmo
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+6 # Francisco A Carvalho 19-12-2019 16:29
1. Pedro Alexandre Rocha, o conceito de "assistencialismo barato" não existe numa abordagem séria e responsável da questão do assistencialismo. Não tem quqlquer fundamento.

2. O modelo de assistencialismo do MPD é um modelo hipócrita! Apregoa que é contra o assistencialismo e oferece milhões a empresas privadas. Quando é para oferecer ao pobre coitado é assistencialismo, mas quando é para oferecer a empresas privadas é incentivo. Isto chama-se hipocrisia!
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0 # Jesus 19-12-2019 10:44
Concordo ipsis verbis com a douta análise e argumentário do articulista sobre o que deve ser entendido como assistencialismo. Só discordaria dele, se fosse defender o conceito manipulado de um assistencialismo que apenas dar o peixe, colando ao peixe o selo ou a cor do partido político, com exposição e exploração das fragilidades das pessoas de forma despudorada.
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+5 # Atento 19-12-2019 18:40
O Nelson Mandela disse: "Vivemos num mundo aonde as pessoas param de pensar em cores e raças, mas o que importa são as ideias".
E digo eu que definição de um partido é o que o careteriza ou seja os valores e normas sempre tem um ponto de referemcia. Ser Benfiquista não é crime, e ser PAICV será? ou seja as minhas considersões ja perdem algum brilho? Somos o que somos, e eu sendo PAICV sou menos para aqueles que não são? Ou seja sou menos cabovedeano porque sou do Maio? Essa coisa de côr politica ou de ser de uma ilha é uma visão ultrapassada!
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+8 # Francisco A Carvalho 19-12-2019 18:01
Jesus, colar o selo ou a cor do partido no peixe é desonestidade, corrupção, falta de caráter, etc. Não é assistencialismo.
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+6 # Augusto Borges 19-12-2019 08:01
Caro Francisco

Excelente artigo.
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+4 # Sempre actualizado 19-12-2019 00:52
Tudo dito!

Meus parabens e como sempre um artigo pedagogico.
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