1. Às vezes só a sabedoria popular tem já suficiente bom senso para indicar os melhores caminhos a seguir na resolução de problemas sociais diversos. Há pouco, o taxista me dizia que “cardisanto ta tradu spinhu sedu”. É que se forem deixados, os espinhos dessa planta crescem e hão de ferir no futuro. Todos crescemos a ouvir que “de pequeno é que se torce o pepino”, ou seja, é na fase de criança que se deve investir na formação do carácter dos indivíduos! Parece que nem a sabedoria popular, nem o conhecimento científico social tem sido levado em consideração na abordagem da criminalidade e da insegurança na cidade da Praia, onde já atingiu um patamar sem precedentes: dois alertas de segurança da embaixada dos Estados Unidos de América, em cerca de três meses, um a 29 de julho e outro a 31 de outubro; avisos a turistas que viajam para as ilhas (Reino Unido) e artigos de jornais que denunciam que “bairros periféricos enfrentam uma epidemia de violência de drogas e gangues” (The Telegraph). Certamente, o grau de diversidade e a especialização atingidos a nível interno, terão contribuído para essas manchas na imagem externa do país, embora o foco seja, largamente, a cidade da Praia;
2. Quando se trata de problemas sociais há dois aspetos fundamentais que devem ser considerados. Por um lado, o facto de que, por vezes, o problema vai se arrastando ao longo do tempo, tornando-se cada vez mais complexo, sem que nos apercebamos dessa sua evolução. Por outro lado, os problemas sociais nunca têm uma causa única. Pelo contrário, resultam da combinação de um conjunto de fatores. Daí, podermos afirmar que o problema da criminalidade e da insegurança na cidade da Praia – sendo um problema social – vem evoluindo há anos e tem por detrás um conjunto de causas. Na certeza de que existirão muitas outras, queremos abordar aqui apenas três causas: (i) o vazio deixado nos centros urbanos pelo desaparecimento da autoridade tradicional, em particular em relação à Praia; (ii) o aumento da pobreza urbana; e (iii) as medidas falaciosas que têm sido tomadas para combater a criminalidade e a insegurança;
3. É do conhecimento geral que, aqui na Praia, até meados da década de 90 podia-se dormir tranquilamente com as portas e janelas abertas à noite, ou até mesmo em esteiras de palha ou colchões, no terraço ou à porta da casa. Talvez, já nem todos se lembram que depois da independência, em 1975, até à abertura ao multipartidarismo, em 1990, havia três estruturas sociais que representavam a autoridade a nível dos bairros: a comissão de moradores; o tribunal de zona, com os seus juízes; e a milícia popular. Tudo isto sem contar ainda com o respeito que havia pelo estatuto do mais velho, sempre obedecido pelos mais jovens, além de uma espécie de veneração pelos idosos;
4. O facto é que a abertura democrática foi dominada por uma abordagem e ensinamento que instigava o desrespeito pelas autoridades existentes até essa altura. As comissões de moradores, as milícias populares e os tribunais de zona foram desmantelados abruptamente e, pior ainda, a sua memória e significados foram vilipendiados pública e repetidas vezes. Ao mesmo tempo em que se ouvia jargões populares estabelecendo: "oji ka tem polisia". Criou-se assim um vazio em termos de autoridade de proximidade, afrouxou-se o sistema de vigilância comunitária (comunidade no sentido de Émilie Durkheim e Ferdinand Tönnies) que vigorara até então, e os jovens passaram a se autodefinirem e a crescerem nesse ambiente novo e sem limites. Ao contrário do que alguns podem imaginar, um ambiente assim funciona como uma espécie de bomba com retardador. Explode décadas mais tarde;
Boaventura de Sousa Santos, um destacado cientista social português, tem se dedicado ao estudo da justiça popular |
5. Considerado o elevado grau de pobreza verificado em Cabo Verde que é de 36% (INE-IDRF, 2015), há muitas vozes que se levantam com a tese de que enquanto houver um fulano pobre que não se enveredou pelo mundo do crime, fica provado que a pobreza não é causa de criminalidade. O recurso a esta tese é sinal de que até ainda não se chegou ao centro da questão. Dizer que em relação a um jovem pobre, a probabilidade de se tornar delinquente é maior do que para um jovem rico, não quer dizer que todos os jovens pobres vão se transformar em criminosos. Vários estudos confirmam que essa probabilidade é, de facto, maior. É suficiente anotar que os gangues de jovens delinquentes na cidade da Praia são quase que exclusivamente originários dos bairros mais periféricos e mais pobres da cidade. Praia tem quase um quarto da pobreza de todo o país, 22%! No entanto, as estratégias que têm vindo a ser apresentadas no combate à criminalidade e insegurança falham porque, estranhamente, não tomam em consideração este que é o maior problema nacional, a pobreza. São nos bairros pobres dos subúrbios que emergem os gangues e é também de lá que é a maioria da população prisional do país;
6. Em terceiro lugar, as medidas pouco eficazes que têm vindo a ser tomadas. Há dois traços comuns entre essas medidas. Por um lado, coloca-se todo o investimento na reação ao crime cometido, aumentando o número de polícias, aumentando carros e mais meios materiais. O segundo traço comum é a contínua tentativa de mascarar a realidade, característico de quem acredita que manipulando os dados estatísticos e proibindo a cobertura nos telejornais da televisão pública (TCV) seria suficiente para mudar essa realidade. As câmaras de vigilância, por exemplo, não eliminam a possibilidade de ocorrência de assaltos. Se é certo que podem ter um efeito dissuasor, estão aí também vários registos de assaltos em locais cobertos pela videovigilância, com o recurso a capuzes ou a migração dos assaltantes para as áreas sem cobertura videovigilante – presente apenas nas vias principais;
7. Assim, somos levados a concluir que os investimentos feitos falharam a raiz do problema, não atingiram o “espinho do cardisanto”, nem o “pepino”. O primeiro erro, sublinhe-se, está em considerar a criminalidade e a insegurança como sendo problemas exclusivamente policiais, quando, na verdade, são problemas sociais que, logo, exigem respostas sociais – neste caso, centradas na família e na comunidade, lá onde crescem os jovens. É evidente que um Governo que vê o apoio social às famílias como uma medida de assistencialismo a ser sempre condenada, jamais poderá perceber e aceitar o falhanço que representa o investimento só em viaturas, câmaras, armas, lâmpadas, calcetamentos, escadas e pavês. Talvez, cada família vai ter de constituir uma empresa bancável para poder ter apoio para resolver os seus problemas sociais e ajudar a construir um futuro melhor.
Links e referências bibliográficas pela ordem em que aparecem no texto:
- Notícias Sapo (29 de julho de 2019), Estados Unidos emitem alerta de segurança após ataque a autarca da Praia
- Expresso das Ilhas (31 de outubro de 2019), Embaixada dos EUA alerta para insegurança na Praia
https://expressodasilhas.cv/pais/2019/10/31/embaixada-dos-eua-alerta-para-inseguranca-na-praia/66404
- Telegraph (2 de novembro de 2019), Cocaine highway. On the front line of Europe's drug war
- Durkheim, Émile (1978a), As regras do método sociológico. In: DurkheIm, Émile. Durkheim – Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
- Durkheim, Émile (1978b), Da divisão do trabalho social. In: Durkheim, Émile. Durkheim – Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
- Tönnies, Ferdinand (1995a), Comunidade e sociedade. In: Miranda, Orlando de. Para ler Ferdinand Tönnies. 1. ed. São Paulo: EdUSP.
- Santos, Boaventura de Sousa (2015), A justiça popular em Cabo Verde, São Paulo: Cortez.
- A Nação (24 de novembro de 2017), Pobreza extrema em Cabo Verde: cada pobre do mundo rural vive apenas com 49 mil escudos por ano
- Lakshmi Iyer e Petia Topalova (2014), Poverty and crime: evidence from rainfall and trade shocks in India
https://www.hbs.edu/faculty/Publication%20Files/14-067_45092fee-b164-4662-894b-5d28471fa69b.pdf
- Pinheiro, Paulo . S. (1997), Violência, crime e sistemas policiais em países de novas democracias
http://www.scielo.br/pdf/ts/v9n1/v09n1a03
- Lourenço, Nelson (1998), Delinquência urbana e exclusão social, in sub judice, justiça e sociedade, criminologia, o estado das coisas.
- Cabral, Santos (1998), Espaço urbano e gangs juvenis, in sub judice, justiça e sociedade, criminologia, o estado das coisas.
https://repositorio-cientifico.uatlantica.pt/bitstream/10884/422/1/1998_Sub_Judice.pdf
Os bairros pobres e subúrbios da capital resultam de más politicas habitacionais, da desregulação no setor imobiliario e especulação financeira, das desigualdades sociais, da falta de oportunidades, do excesso do centralismo, etc.
Por isso limito-me a acrescentar que o arrastar dos diversos problemas apontados (muitos dos quais bicudos e criados não se sabe com que intenção, acabaram por ultrapassar os seus principais responsáveis), tem dado tempo aos seus autores para arranjarem bodes expiatórios, sacudirem a água dos respetivos capotes e atribuir o ónus a outrem, mesmo tendo a consciência que saíram da sua própria lavra!
O desmantelamento do existente, p.e., iniciado na década de 90 sofreu profunda sofisticação a partir de 2016, enraizou-se já como uma autêntica cultura do desmantelar sem capacidade de substituição do desmantelado!
Caro Francisco Carvalho, tens aí matéria para vários e longos seminários!!
Meus parabéns e forte abraço.
Eu nas minhas análises sempre apontei o desmantelamento das estruturas locais (responsável de zona, milícias tribunal popular e outros como um grande falhanço.
podiam estar ultrapassados era apenas dota-los de novos modelos de intervenção. Mas acabar e deixar um vazio, foi a sementeira de tudo que sofremos em termos de insegurança, hoje, principalmente na Praia.
Quando eu era miúdo lembro dos cabo chefes, das policias auxiliares que punham respeito nas zonas.
Na Europa ainda existe, por exemplo em Portugal estruturas como as juntas de freguesia que têm uma função importante.
Parabéns Francisco.
Ps. Este artigo metere um premio da Literatura
Este agora me fez rir as gargalhadas, #Pepino!!
O Casemiro de Pina no seu estilo habitual, Pró-America e derruba tudo o que é Russia, China, Portugal, etc., como se os sistemas coincidissem em pleno com os seus dirigentes!!
- "Kardisantu ta rinkadu sedu anti kria spinhu" e as câmaras de videovigilâncias foram instaladas para controlar e perseguir os conditores e não para controlar a insegurança.
Quanto ao resto, penso que o gov.cv deveria ficar-te agradecido por teres chegado ao fundo da questão e apontando soluções, em vez de continuarem a dormir e a tentar tapar o sol com peneira.
Quando acordarem será muito tarde.
Agora, depois de ler esse ditado popular na forma como o "Atento" escreve, acho que faz mais sentido do que o que me disse o sr. taxista. As tradições orais têm esta característica de, por vezes, sofrerem alterações quando são transmitidas. Entretanto, é de se notar que mantém-se a ideia de que se tem de intervir cedo, antes que seja tarde demais.
Lembro-me, com os acontecimentos de 11 de Setembro, de um escrito que dizia "nunca pensei que tal acontecesse no meu quintal". Pois é, eu daquelas que adora "o sentar à porta com a família, ao fim da tarde para um dedo de conversa. Já vem de décadas!
Acredite que, em pleno Platô, junto à embaixada dos EUA, a minha mãe e eu fomos perturbadas por jovens que, ultimamente têm rondado a zona, (facto do da vinzinhança, que já se pôs alerta).
Todos os dias temos relatos, para lá de preocupantes, da senhora que há anos trabalha connosco e mora em Eugénio Lima.
Que cada um de nós não deixe de dar o seu contributo na senda do difícil, mas não impossível combate desse fenómeno estrutural que assola particularmente a Praia.
Cordiais cumprimentos