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Por: Elsa Furtado

Na cultura ocidental a mulher é vista como símbolo de beleza. É imortalizada em poemas, canções. Há livros que dedicam a obra toda à mulher e seus atributos, provando que ela é diferente e que por isso mesmo, merece tratamento distinto. Penso que na maioria das culturas pelo mundo, mulher desempenha um papel de destaque na sociedade, de uma forma ou doutra.

Em Santiago ela é o símbolo da luta e persistência. Já visitei todas as ilhas habitadas de Cabo Verde, mas em nenhuma a mulher é tão “guerreira” e aguerrida como a mulher badia.

Ela é a primeira que se levanta a última a deitar. Toma conta da casa e toma conta do campo, sabe das crianças e cuida do marido.

Ela é a gestora e ao mesmo tempo a que traz o sustento para casa. Seu corpo mais parece uma árvore ressequida; suas mãos são duras, seus pés são imundos…Ela não diverte: o seu entretenimento é o trabalho. De sol a sol. Quer faça sol, haja vento ou chuva, ela lá vai.

Não faz manicura ou pédicure no seu dia-a-dia; se o faz, é pontualmente; não vai ao salão saber do cabelo. Suas mãos são rudes.

Sua vida de bran bran muitas vezes começa muito cedo. Se tiver o desaire de ter o primeiro filho muito precoce (o que acontece muitas vezes), a solução é ” banheira na kabesa”. Nela, ela tem de procurar o sustento do filho, com a possibilidade de aparecer mais filhos. Quantas mulheres, ainda não-mulheres, nós vemos todos os dias de banheira na cabeça? Sem exagero, algumas ainda adolescentes de 12 anos!

Muitas vezes no nosso comodismo ficamos satisfeitos porque a mulher de banheira traz para as nossas casas desde peixe a legumes, ovos a frutas, roupas a bijuteria! Exploramos, pedimos para baixar de preço, xingamos. Mas paramos para pensar sobre a vida desta mulher? Talvez por ser tão comum, já nem desperta compaixão!

Nem sempre decide dos filhos que quer ter; anticoncecionais muitas vezes toma através das amigas e comadres (os companheiros ou maridos proíbem de tomar, com medo de que se tomarem, podem cornar-nem dona do seu corpo são!). Negociar isso com o marido e companheiro ainda é uma miragem.

Não importa se estiver parida ou não; se for parida, o bebé fica em qualquer lado, com qualquer pessoa (pari dizaforu, kria karidadi, dizem no batuku). O bebé senta-se no chão, come o que calhar, bebe água de açúcar, na companhia do cãozinho, do leitão! Se houver algum problema é porque é da vontade de Deus, pois é Ele é quem decide os que escapam ou não! Ou então o bebé vai nas costas, por entre cutelos e ribeiras, agarradinho ao lombo da mãe. Ou ainda, se for num lugar onde tem que ficar parada, o bebé lá está, em caixotes, no chão, enfim, onde calhar.

A mulher badia não vai a um bar tomar um café. Não vai a um restaurante almoçar. Depois dos primeiros filhos, falta-lhe os dentes. Começa a se degradar. Se tiver a sorte de ser casada, às vezes pode-lhe calhar ainda sustentar o marido. Se não, vai ter que trocar de homens na tentativa de encontrar apoio para criar os filhos. O que regra geral, sai um fiasco, pois, acaba tomando conta dele e dos outros filhos que eventualmente aparecerão.

É ela que dinamiza recursos para construir a casa. Que faz esforços para recheá-la.

Mendiga o carinho, procura o amor. Pouco lhe é dado, mas tem muito a dar. Perdoa até 70 x 7. É fiel. É leal. Tem paciência, sabe esperar.

Recentemente, passou ainda a fazer os afazeres que eram típicos dos homens, pois esses, quando excetuados os que bebem, põem raio, muito poucos restam para as atividades braçais: lavoura, pastorícia e coisas mais.

A mulher badia hoje é açougueira, lavradora, xobradera, pastora.

A mulher badia é gestora, é administradora, e executora.

Quando vai para as festas, vai para trabalhar: cozinhar, lavar loiça, por a mesa. Servir aos outros. E contenta-se com isso.

A mulher badia está em todo lugar, fazendo de tudo o que homem faz e fazendo a sua parte como mulher. Só lhe falta a parte da beleza. Descansar-se. Produzir-se. Vestir-se. Cuidar-se. Dar-se ao luxo de ser servida. De experimentar ser apaparicada.

Encontra no batuku a sua fuga: nos cantos e no rebolar da coxa, deita fora toda a sua frustração. Ironiza, maldiz, deixa recado, desafia, tagarela e provoca. Faz sarcasmo, diaboliza, manda recado, e espicaça.

No  batuku encontra a forma de exprimir em palavras e corpo, aquilo que vai na mente abafada e cansada.

O batuku é uma forma de manifestar toda a sensualidade escondida e não valorizada de uma cultura onde demonstrações de carinho e afeto são relegados ao segundo plano

O batuku ainda é a forma de demonstrar a sua resistência face às agruras da vida e a sua tenacidade na luta contra as adversidades.

Mudou a indumentária. Das 7 saias e blusa  mandrião passou a saias ligeiras, calças e até shorts, para facilitar nas tarefas duras e ajudar também na hora de sair. Veste-se de forma mais leve, mas em dias especiais não dispensa a sua saia txabeta de boita, acompanhada dos brincos 7 chaves e cordão sanpé.

O seu nível de educação melhorou bastante. Sabe ler e escrever. Sabe fazer contas. É boa em gerência. Lida bem com os números.

Continua sendo muito religiosa. Vai à missa, vai às festas de romaria. Vai aos encontros religiosos, batiza todos os seus filhos. Paga as promessas, manda rezar as missas a Nho Sto. Amaro,Nho S. Miguel, Nho Sr. Mundo e até N. Sra. Da Graça! Acredita ainda nos sacramentos, mas tem respeito por outras formas de manifestação de espiritualidade. Vai ao hospital quando a situação o exige, sem dispensar as suas  “mezinhas”. Vai à casa das curandeiras e macumbeiras. Consulta a sua parteira. Usa sinsa kaia. Faz sete cruzes com babosa, lava os filhos com aquela água. Acende a sua vela. Reza o seu terço.

 A mulher badia conquistou o mercado das outras ilhas. Tornou-se indispensável. Leva de Santiago e traz para Santiago.

A mulher badia revolucionou a economia. Compra e vende. Produz e vende. Vende e investe. Investe e lucra. Com o lucro volta a investir. E labuta. Dia e noite.

Quando ficar viúva, não importa a forma que o marido a tenha tratado, se morrer com ela ou com outra: enoja, põe esteira, dá a missa, paga a promessa, fica de luto por dois anos, preto, niki niki. Porque se casou é para sempre. Se ele viajou, não importa quanto tempo lá esteve, quando voltar é seu marido!

A mulher badia é o símbolo da resistência. Ela é tenaz, audaz, e não teme as dificuldades. Por tudo isso eu digo: a mulher badia é simplesmente demais! (eu por puro acaso sou badia!)

 Calheta, setembro de 2017 

Comentários  

0 # ANDRADE NATALINO 20-12-2017 10:34
Belo trabalho Sra. Elsa Furtado.

Será uma poema narrativo?

É sim, uma bela dedicação às mulheres badias como a minha mãe, minha irmã...!
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0 # José Lito Miranda 15-12-2017 22:55
Um excelente trabalho retratando sobre a vida das nossas mulheres! Parabéns professora Miss Furtado gostei de ler isso, a forma como foi escrita.
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0 # Domingos Landim 09-12-2017 12:10
Brilhante, Elsa Furtado! Um verdadeiro hino à mulher badia. Continue a brindar-nos com os seus escritos, «so mamente-manente», como se diz na nossa querida ilha de berço, para enfatizar a necessidade de empurrarmos o trabalho para frente.
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+1 # AVdS/Silvino Fernand 06-12-2017 18:45
Elsa Furtado. Que te posso dizer? sinto-me envergonhado, como badio e como cidadão. Também indignado com os senhores (escrevo senhores com letra minúscula/pequena) porque não senhores sem «s» e se escrevesse com «c», embora verdadeiro, poderia estar a ameaçar o crédito alheio. Vou a seguir tentar descrever o despacho de um procurador (entenda-se curador de menores) relativamente a um processo de averiguação de paternidade = «parirnidade» em Cabo Verde, pelo descrédito a instituição família, por conta da demissão absoluta das instituições que a deviam e, ainda devem promove-la e defendê-la. Eis a estória do estórico despacho que deixou a criança sem o nome do seu procriador (pai ainda não é): - Procurador/curador ao pretenso/alegado progenitor - «quando conheceu a mãe f...? em 22 do último mês do ano de... respondeu o sujeito; - Proc. quando começou a ter relações com a mãe f...? - no mesmo dia, respondeu; - Proc. e quantas vezes isso acontecia? - todos os dias, respondeu o pretenso procriador; e quantas vezes por dia, indagou o proc.; várias vezes por dia (perdi a conta, não consigo precisar - eramos como marido e mulher, vivíamos na mesma casa) respondeu o sujeito; isso durou quanto tempo? inqueriu o proc. isso durou o tempo que durou as minhas férias, até ao inicio da segunda semana do 3.º mês do ano seguinte, respondeu o pretenso progenitor, que, para encurtar, reconheceu pelo caminho, ter estado dia e noite com a mãe f... durante esse período; e, ainda assim, alegou, perante essas evidências levadas por si, que lhe subsistiam dúvidas, quanto à sua paternidade... e, creiam-me, o procurador concordou com o pretenso progenitor e deixou a criança sem registo, relegando o processo de investigação, para quando ela completar os 18 anos. O que mais me inquietou foi quando uma outra mulher (ainda moça, sujeita aos mesmos riscos/golpes de paridor) me barrou o acesso ao processo usando toda a casta de empecilhos.... quando uma moça (criança/mãe - não foi o caso) bate á porta daquele que devia ser guardião da justiça e assim é trada, esvai-se-lhe a esperança e se auto-ministra um cocktail de anestesia contra toda a casta de dores e desdém e pega na sua banheira e lança-se sobre os seus pés à procura de sustento para a cria, que muitas vezes se revela contra a própria vida da cria que fica exposto a toda sorte de riscos, cabendo ao SENHOR, o Todo Poderoso, escolher, de fato, quem passa a fase seguinte.... que Deus no ajude e nos conceda AMOR e compaixão pelos nossos semelhantes. Já e tempo de mudarmos as vestes. de predadores para os de mansos e humildes cordeiros.
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+2 # Cutelinho 06-12-2017 10:44
Um belo texto de elogio a mulher caboverdiana, neste caso mais direcionado a mulher badia. Sou um badio da capital e não vejo tanto essa divisão que os senhores comentaristas (certamente sampadjudos) fazem e gostam de o fazer entre a cidade e o campo, ate porque com as estradas, os transportes e as novas tecnologias, a nova geração tende a igualar-se. Continue a escrever e quem sabe passe para a escrita de contos e romances, leva jeito. Mantenha
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+1 # Melany 03-12-2017 19:14
Uma narrativa que exalta o papel da mulher cabo-verdiana de Santo Antão a Brava, com os seus gostos e desgostos da vida crioula. Badia rica, forte e balente! Muitos parabéns Elsa Furtado pelo texto, splendid!
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+1 # Caty Lopes 01-12-2017 17:35
Estimada Elsa Furtado, gostamos do seu artigo e retrata muito bem a badia do interior de Santiago. No entanto, queremos dize-la que antigamante so se considerava uma pessoa de badia ou badio se ela ou ele fosse do interior de ilha de Santiago, atendendo que as pessoas da Praia, não se consideravam de badias ou badios, a não ser quando se discutiam ou brigavam com sampudjudos ou tchés (São-vicentinos) de outras ilhas, em que se assumiam sem resmungos essa naturalidade, doado pelo Nhor Dês e por herança dos seus pais. Por essa razão, se chamava as pessoas de interior de Santiago como badia ou badio di pê rachadu. Por isso as mulheres da Praia, são sérias, religiosas, gateiras, prostitutas e outras coisas da urbanidade, o que raras vezes acontence com as chamadas badias di pê rachadu do interior de Santiago, que são fechadas no seu eu. Assim se pensava no antigamente e nos idos tempos do Governador Chinha Bonga e do Coronel João Barros de Bizerro. Gostamos do seu artigo e esperemos que seja de facto uma badia de pê rachadu là di Rubereta.
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0 # Elsa Furtado 03-12-2017 19:31
Ola Caty obgd pelo contributo!
Sou e srei smp uma badia de Ribeireta
Abraços
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+3 # José Carlos 30-11-2017 18:02
Será a mulher do interior.
Porque as da Praia hoje em dia sentam-se nos cafés, fofocam, colocam cornos nos maridos (embora se fazem as santas) , estão a procura de um bom badiu ou até sampas que a possa sustentar.
Já disse
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+1 # Elsa Furtad 01-12-2017 04:39
Ola, José Carlos
Obrigada pelo contributo, as minhas reflexões não pretendem ser uma verdade encerrada, mas reflexões a partir das vivências minhas onde moro (no interior). É claro que deve haver o outro lado-mas isso deixo para outras pessoas escreverem. Votos de um bom dia e bom final de semana.
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+9 # SÓCRATES DE SANTIAGO 30-11-2017 10:50
Cara Elsa, leio sempre, com muito prazer, as as suas crónicas, apesar de algum exagero em algumas. Porém, esta, " A MULHER BADIA," me tocou muito e no fundo do meu coração badio. Estou a relê-la com lágrimas nos olhos, pois cada frase me lembra a MINHA QUERIDA MÃE BADIA, também MULHER GUERREIRA, LABUTADORA, que me criou e também os meus irmãos. A MULHER BADIA É BONITA, SIM, É LINDA, É ESBELTA E ATLETA. Amo-te, Ó BADIA! Amo-te de todo o coração. Hoje vou comprar um "bouquet" de flores, rosas bem vermelhas e verdes, e oferecê-las à MINHA MULHER, que é BADIA e, ao som do funaná "MI N GOSTA DI NHA BADIA", do conjunto "FERRO GAITA", vou enchê-la de beijos e dizer-lhe que a AMO MUITO e que ela é a MELHOR MULHER DO MUNDO. Muito obrigado, Elsa, por me teres despertado, de repente, um grande sentimento de amor e carinho por VÓS, as GUERREIRAS MULHERES BADIAS, pilar sólido desta GRANDE ILHA DE SANTIAGO e de CABO VERDE. BEM HAJA AS BADIAS!!!
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+2 # Elsa Furtad 01-12-2017 04:41
Ola, Amigo Sócrates
Se as minhas escritas tiverem algum impacto positivo em si, fico muito feliz! Mto obrigada pelas suas palavras. Feliz abadia que lhe tem como esposo!Abraços
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